quinta-feira, 5 de março de 2020

Memórias de uma tragédia que o tempo não apagou - o colapso da ponte de Castelo de Paiva

A PONTE EM COLAPSO (Rui Duarte Silva)
As chuvas que devastaram o litoral sul de São Paulo no início desta semana me trouxeram à lembrança uma tragédia que, coincidentemente, aconteceu no início de março, mas em Portugal: a queda da Ponte Hintze-Ribeiro, ou a ponte Castelo de Paiva - Entre-Os-Rios, que deixou marcas também na minha família.

No dia 4 de março de 2001, em Aveiro, Portugal, a ponte que ligava Castelo de Paiva e Entre-Os-Rios desabou, matando 53 pessoas que estavam num ônibus, mais seis que caíram logo atrás. Quase 60 vidas engolidas pelas águas porque a ponte, construída 116 anos antes para a passagem de cavalos e bois, não suportou o tráfego pesado de duas mãos em seus seis metros de largura. Segundo minha tia Ana Ferreira, o motorista do ônibus era um primo nosso, Helder. Amigos do meu avô (nove pessoas da mesma família) também desapareceram nas águas do Douro, agitadas por causa da tempestade que caia sobre Castelo de Paiva naquela noite.

Ainda de acordo com minha tia, o irmão de um tio nosso perdeu o neto; uma moça, cujo corpo foi resgatado abraçando o seu bebé, trabalhava com nossas primas.



Fatalidade? Incúria, desprezo à vida. A ponte Hintze-Ribeiro, político que a encomendou e que, posteriormente, foi primeiro-ministro de Portugal, necessitava de reformas nas estruturas. Não aconteceram.

Jorge Coelho, ministro do Equipamento Social, demitiu-se na mesma noite. Integrantes da Junta Autónoma de Estradas, que sabiam da precariedade do equipamento, foram absolvidos cinco anos depois, quando a comoção já havia transformado vidas perdidas em estatística.

Para esse tipo de políticos e servidores, que se servem do povo quando deveriam servir ao povo, pontes, ruas e prédios servem para lhes render homenagem. Se cair, paciência. Pedem desculpas, respondem um processo e contam com a memória curta de toda e vida que segue. Ao menos as deles seguem, pois nem dignidade sobra a quem fica.

Dos 59 corpos tragados pelo Douro, somente 20 foram localizados, deixando o luto incompleto a quem não pode sequer enterrar seus mortos, dentre eles o primo Helder. Vão- se os entes, fica a esperança de um dia aparecerem, como que por milagre, e nem precisa ser sebastiano para isso.

Desde 2003 há no local o Anjo de Portugal, uma estátua de bronze que pesa 12 toneladas, uma para cada um dos seus 12 metros de altura, e que tem 59 castiçais na base, nos quais são acesas 59 velas todo dia 4 de março, além dos nomes das 59 vítimas. Era melhor haver respeito, pois assim não haveriam castiçais ou velas. Nem as mortes.

Pós Edit>> Lendo uma matéria de 2015 do expresso.pt, vi que, passados tantos anos da morte do primo, seu quarto segue intacto e seus pais dormem nele todos os dias, como uma espera em vão por quem nunca vai chegar.

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