sábado, 6 de novembro de 2021

Os idiotas e a elitização da Seleção Brasileira

A FESTA É PARA QUEM? Delmiro Junior/Raw Image

Recebi no meu celular a notificação de que os ingressos para o jogo entre Portugal e Sérvia, que decidirá no próximo dia 14 uma vaga direta à Copa do Mundo de 2022, estão à venda. Não, não comprarei, mas fiquei curioso para ver quanto morre nessa brincadeira aí. Então, entrei no site da Federação Portuguesa de Futebol e vi que os bilhetes mais baratos, disponíveis para os setores atrás dos gols do Estádio da Luz, custam entre €10 e €12,5.

-Não pode ser!, pensei. Daí fiz o que tinha que ser feito: falei com quem mora lá para confirmar. É isso mesmo, este é o preço dos ingressos para ver qualquer jogo da Seleção de Portugal dentro do país! Como o salário mínimo em Portugal é €665 e a carga horária mensal é de, no máximo, 200 horas, o torcedor português que recebe a menor remuneração oficial do país (€3,325 por hora) terá que trabalhar por um poucochinho a menos de quatro horas (3h45min36, para ser mais exato) para poder adquirir a entrada mais cara entre as disponíveis. A mais barata custa 3h06 de trabalho, e ainda sobrarão 30 cêntimos de troco.

Que o torcedor brasileiro é tratado como idiota, não é novidade nenhuma. O que talvez a gente não note, ou se nota nem se importa mais, é que somos tratados como idiotas ricos - ou então como idiotas dispostos a gastar o que não temos para ver a Seleção Brasileira. No último jogo da equipe do técnico Tite em solo brasileiro, a vitória por 4 a 1 contra o Uruguai, pela 12ª rodada das Eliminatórias - para pegar uma competição equivalente -, as entradas mais acessíveis custaram R$125,00 (meia entrada). Como o salário mínimo no Brasil é R$1100,00 (sem os descontos), o torcedor brasileiro precisou ralar bem mais que o gajo que quererá ver Cristiano Ronaldo e cia em ação: deixou no mínimo 11,36% do que ganha pela entrada mais barata, que é o equivalente a 25 horas de trabalho, considerando a carga horária mensal de quem ainda está sob o regime da CLT de (220 horas), o que dá R$5 por hora trabalhada. Isso se ele tiver o direito ao benefício de pagar meia. Caso não, é só dobrar os valores e o tempo equivalente. Ou seja, sem a carteirinha, o tempo de trabalho ultrapassa uma semana - sem os descontos, é bom lembrar.

Ainda assim, a comparação é feita entre um jogo que, por mais que seja contra um rival histórico, o Uruguai, não passa de mera formalidade imposta pelas intermináveis 18 rodadas que, ao cabo, terão o Brasil classificado, e o jogo que decidirá o fado da Seleção Portuguesa, que dependendo do que arranjar na Irlanda no dia 11, jogará pelo empate ou precisando vencer os sérvios no estádio do Benfica para garantirem uma das 13 vagas europeias do mundial sem depender de passar pelo purgatório da repescagem, que nesta edição terá 12 participantes e pode haver gente grande por lá, já que Espanha, Itália e Holanda, assim como Portugal, ainda fazem contas, sem contar que pode aparecer um Haaland ou um Lewandowski pelo caminho.

Se formos incluir os gastos com o transporte, então, vai faltar maquiagem e nariz vermelho para tanto palhaço: por se tratar de um país pequeno, é possível varrer todo o território português de trem. Usando o trajeto entre as duas principais cidades portuguesas como exemplo, a viagem mais barata entre Porto e Lisboa leva 3h10 e custa €25,10. De ônibus, porém, sai a €19, mas leva de 3h30 a 4h25. Como o torcedor deverá voltar para casa, aplica-se o valor aproximado para o retorno e temos um gasto, entre ingresso e trajeto, menor que €100, isso se pensarmos em quem não reside onde o jogo será disputado. Se quiser, existe também a opção pelo trem de alta velocidade, o Alfa Pendular, que é mais caro - ou bem mais caro, de acordo com a classe escolhida -, mas ainda assim cabe na algibeira do trabalhador lusitano, que levará cerca de 2h40 até chegar à capital.

É óbvio que a realidade brasileira é outra, mas se atendo ao porte do local de partida até a cidade onde o jogo foi realizado, um torcedor que saiu de São Paulo pode ter gastado somente com passagens de ida e volta mais de R$2 mil reais, isso sem contar o custo de hospedagem na capital amazonense ou n'algures onde pudesse ter um teto sobre a cabeça, se considerarmos pouco provável que o torcedor/palhaço tenha voltado para casa logo após o jogo. Neste caso, quem conta as moedas para fazer o dinheiro preencher mais dias no calendário está automaticamente descartado.

MAIS CLARO: o perfil nas arquibancadas mudou (Foto: Conmebol)

Assim, não é preciso ser um gênio matemático para perceber que ver os jogos da Seleção Brasileira in loco não é um programa para qualquer bolso, e isso passa a ser aplicado aos clubes, que tem disputado - e perdido - o coração do torcedor tupiniquim com os ricos e bem organizados distintivos do futebol europeu. Também não é necessário ser nenhum deus da lógica para concluir que trata-se de um processo de gentrificação, há muito em curso na América do Sul para manter o pobre e o preto longe do negócio, mas este é tema para muito mais tinta.

"GERALDINOS": pretos e pobres não têm mais lugar nas
modernas arenas brasileiras (Foto: Custódio Coimbra)

Por fim, outro gasto também incompreensível é o do tempo que a imprensa leva para discutir os porquês de a paixão do torcedor pela Seleção ter diminuído. Não é só porque o calendário atrapalha os clubes e a identificação com a “amarelinha” diminuiu. É pertencimento. É respeito. E respeito é um item que quem determina por onde e para quem a bola rola por aqui não costuma ter por quem paga as contas para além das bilheterias e camisas de 400 reais.

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