segunda-feira, 11 de março de 2024

Cuca, Bauermann, Robinho e a ética masculina do torcedor de futebol

*texto originalmente publicado no site Ludopédio (ligar)

Protestos abreviaram a passagem do treinador, então condenado
 por estupro, pelo Corinthians (foto: Meu Timão)

Cuca foi anunciado como novo treinador do Athletico paranaense e o caso da condenação por estupro quando ainda era um jogador no início da carreira e defendia o Grêmio voltou ao centro das discussões, como era esperado. Da mesma forma, também, discutimos uma porção de coisas: se ele poderia ou não voltar a trabalhar, se pode ocupar um lugar de liderança ou idolatria, mesmo se é culpado, já que o processo foi anulado e o crime prescreveu, portanto, sem haver a possibilidade de um novo julgamento. Até sobre a legislação suíça nós palpitamos a rodo nos últimos dias, como se estivéssemos falando de trivialidades como o preço da cerveja. Falamos de quase tudo, exceto o essencial. Não falamos sobre a vítima.

Precisamos discutir a ética masculina do torcedor de futebol e o que a constrói. Atenção! Não é a ética do torcedor masculino, é a ética masculina, pois há mulheres que reproduzem o discurso machista e duvidam da palavra da vítima, suposta ou não, como se o homem não fosse o agressor, apenas uma vítima da mulher ou das circunstâncias.

É uma construção social complicada de ser desfeita, mas é necessário. As escrituras, no nono mandamento da Lei de Deus, coisificaram a mulher. O que hoje é “não cobice a mulher do próximo”, era “Não cobice a mulher. Não cobice a casa do seu próximo, nem a sua propriedade, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença ao seu próximo”. A mulher era reduzida a uma propriedade.

Segundo a ética masculina do torcedor de futebol, é mais grave quando um Bauermann combina um cartão amarelo ou troca um pênalti por alguns trocados do que agredir, violentar ou matar uma mulher. Robinho, condenado por estupro na Itália, está livre a ponto de frequentar churrascos no Santos e ser tietado por um jogador que até outro dia respondia por violência doméstica.

“Ah, a moça retirou a queixa”, mesmo com farto material probatório. A retirada da queixa não significa que a agressão não existiu; a prescrição do crime não faz o estupro desaparecer.  E discute-se se o jogador estragou a carreira. “Que pena, tinha tanto potencial”. “Quem poderia imaginar? O jogador com mais títulos na história do futebol jogou sua história no lixo”. Que se lixe a história, a carreira. O valor disso é ínfimo ao pé do que destruiu.

Milly Lacombe, no UOL, questionou brilhantemente a formação do indivíduo. A mulher é educada a saber se portar, a se vestir sem provocar, a não se colocar em situações que favoreçam que seja violentada, como se seu comportamento justificasse o crime. Ao homem é ensinado a caçar e interpretar qualquer sinal de simpatia feminina como uma possível abertura de pernas. Seu capital social, e aqui reproduzo exatamente o termo que Milly usou porque não há forma melhor para se referir a isso: o capital social do homem aumenta conforme ele pega mais mulheres. Ela é a vagabunda; ele, o fodão.  

Da mesma forma que o menino espanhol chamou Vini Jr. de macaco porque reproduz o que observa no seu entorno, é ensinado que a mulher está em uma categoria inferior e deve servir ao homem, querendo ou não. Mais importante que discutir a punição e a recolocação profissional é rever como estamos educando nossas crianças, principalmente os futuros homens, para que eles não vejam as mulheres como mero instrumento para uma noite de farras, a tal travessura irresponsável, como qualificou na ocasião o colunista do jornal Zero Hora, Paulo Santana. Para o homem pode ser somente uma noite. Para a mulher, a vítima, é uma vida. É a vida dela, da família dela.

Não cabe mais repetir a célebre e infeliz frase atribuída a João Saldanha, "eu o quero para jogar no meu time, não para se casar com a minha filha", tão comum nos anos 1990, os tais anos de ouro dessa bobagem que chamamos de futebol raiz, o “futebol que respira”. Porque a mensagem é mais importante que o gol. Não é sobre ganhar ou perder, é sobre ser decente.  

E só seremos decentes quando interrompermos este processo, entendermos o valor e lutarmos de verdade para que as mulheres sejam respeitadas e tratadas como iguais.

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