sexta-feira, 12 de julho de 2024

PORTUGAL - Qual é o preço da gratidão?

RESPECT Cristiano deveria ser o primeiro a proteger o seu legado
(Robbie Jay Barratt - AMA/Getty Images)

As contas são simples: antes de Cristiano Ronaldo, a presença de Portugal nas fases finais das competições era intermitente. Mais que isso, eram raras as vezes em que a bandeira de Portugal aparecia ao lado de estandartes habituados aos papelinhos de bolso com os jogos, datas e programações, como Brasil, Alemanha, Argentina e Itália, mais acostumados a estas andanças. Duas destas seguidas, só uma vez, com os Infantes, que estiveram nas fases finais do Euro em 84 e da Copa do Mundo de 86, na França e no México, respectivamente.

Não fosse pela fome de gols de Cristiano, Portugal teria falhado a Copa do Mundo de 2014. Sem ele, o Euro de 2016 não passaria de mais uma desilusão, assim como a Liga das Nações de 2019, em que estreou somente na fase final, também tem as marcas das suas botas. A lista a espalhar os feitos alcançados graças a parte dos 130 golos que fazem dele o maior artilheiro, com folga, do futebol de seleções é enorme. E os serviços prestados também. Se Portugal hoje é uma potência quando fala-se de equipes nacionais, o maior responsável é Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro. Em grande parte do percurso, um supersónico a rasgar os céus em forma de chão verde.

EU ESTOU AQUI! Três vezes na rede para garantir a vaga
à Copa de 2014 
(Jonathan Nackstrand/AFP/VEJA)

O problema é que o avançado imparável, explosivo e insaciável ficou no passado, como acontece com qualquer um quando o tempo é o marcador. Mesmo que demore, ao cabo, o tempo levará a melhor. Mas faltou-nos o miúdo de Hans Christian Andersen a avisar que o rei ia nu pelas ruas da Alemanha e, a despeito de tanto talento espalhado em todas as posições e para vários tipos de jogo, o Cristiano Ronaldo procurado era o dos golos à Suécia, à Espanha ou à Suíça, em vez do jogador de 39 anos que os 50 e poucos jogos pesaram como nunca às pernas.

Se em 2022, Cristiano quis usar o Mundial do Catar para mostrar ao mundo que seu clube, Manchester United, e seu treinador, Erik Ten Hag, não lhe davam o valor que merecia - e essa obsessão deitou tudo por terra -, o caminho até o início deste Euro mostrou um jogador ainda com faro de gols e marcas, e útil. Dizia-se, e eu também o disse, que havia dois Portugais diferentes, mas a melhor versão era a que tinha Cristiano Ronaldo, desde que fosse associativo e jogasse para o time, como fez no amistoso contra a Irlanda e nos dois primeiros jogos do Euro, não coincidentemente os únicos em que Portugal venceu. Mais que isso: os dois em que Portugal marcou golos.

Até que...

Até que veio a necessidade de ser o primeiro e único a levar o pão à sopa em seis fases finais - ou manter limpo e estatuto de marcar em todas as competições em que participou com a camisola das quinas. Jogou quando não precisava, foi mantido em campo apesar do rendimento que, de insuficiente, passou a miserável conforme o tempo cerrou a marcação.

Então, o jogador associativo deu lugar a alguém que visava estar o mais próximo possível do gol, que pouco se ligou ao jogo coletivo. Portugal, ao longo de toda a prova, cruzou 153 vezes na área. Nos quartos de final contra a França, a bola foi despejada na área em busca de um avançado facilmente domado pela dupla Upamecano-Saliba 30 vezes, e em só duas Cristiano levou vantagem. Para ilustrar melhor sua participação direta no Euro, Cristiano tocou na bola em média 31,4 vezes por partida, seu pior registro em todas as Euros e Copas do Mundo. Em 2016, na vitória contra a Croácia, o camisa 7 encostou na bola 42 vezes e essa havia sido a menor marca até então. No mesmo jogo, Rui Patrício teve contato com a bola 46 vezes.

Como se não bastasse, a simples presença do jogador demandava alterações no posicionamento de peças fundamentais no sistema de jogo do treinador Roberto Martinez, que funcionou à perfeição nos duelos contra os oponentes mais macios das eliminatórias. Bruno Fernandes, que melhor joga quando apanha a bola na intermediária ofensiva, onde há mais espaços e tempo, tinha que pisar terrenos mais altos para compensar a falta de pressão à saída de bola, já que não se pode exigir este tipo de esforço de um avançado de 39 anos, mesmo sendo supostamente um robô; com a subida do 8, Bernardo Silva cumpria um papel de extremo para o qual nunca foi preponderante. Ou seja, a influência dos dois jogadores mais talentosos de grupo foi diminuída em troca da sombra do que Cristiano já foi. E nenhuma entre as 24 participantes do Campeonato Europeu dispôs de seis amistosos desde o fim das eliminatórias e a prova.

Discutir o papel de Cristiano não é um sinal de ingratidão a quem tanto nos deu. Tê-lo em campo nas segundas partes, quando sua fome tenderia a ser maior contra adversários possivelmente com as ideias e movimentos prejudicados pelo desgaste, só faria sentido se testes assim fossem feitos. Além da hipótese de aumentar a influência do capitão nos momentos em que estivesse em campo, ainda pouparia sua imagem e seu legado. E ainda passaria a ideia de alguém mais comprometido com os objetivos do grupo, em vez de suas próprias marcas. 

Mbappé foi substituído contra Portugal; Harry Kane deixou a meia-final contra os Países Baixos quando o placar ainda apontava a igualdade, desfeita justamente por quem o rendeu; na Copa América, Luis Suárez foi suplente do Uruguai e Messi sequer calçou chuteiras para ficar no banco contra o Peru, na última rodada da primeira fase. Cristiano só viu o número da sua camisola na placa que aponta as substituições aos 66 minutos contra a Géorgia, quando as contas no grupo já estavam feitas e sequer deveria ter jogado. Menos sentido ainda fará se quem tanto serviu à seleção insistir em se servir dela em nome de uma gratidão que ao cabo poderá ficar dispendiosa demais.  

Se calhar, faltou o miúdo a dizer que o rei estava nu. A diferença para o conto de Hans Christian Andersen é que toda a gente já havia notado.

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