domingo, 15 de junho de 2014

A Copa dos analfabetos letrados

*por Fabio Venturini

Desde 1978 a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura não mais identifica a alfabetização apenas como a capacidade de decodificar escritos e conseguir redigir um pequeno trecho com sentido. Para a Unesco, o ser alfabetizado é aquele com capacidade de interferir no seu meio, usando conhecimentos de leitura, escrita, matemática e outras ciências. Aqui pelo Brasil ainda se usa a ideia de “analfabetismo funcional”, muito forte no senso comum, mascarando na verdade se tratar de pessoas politicamente inoperantes mas que sabem ler e escrever.

Mas o que isso tem a ver com futebol? Talvez somente o leitor alfabetizado possa responder.

O analfabetismo está distribuído em todas as classes. Com o “Seu Tião”, servente de pedreiro, por exemplo, devido a N condições sócio-culturais, costuma gerar a sensação de inferioridade que coloca qualquer senhor pobre e sua família no devido lugar social ao qual fazem jus, ou seja, merecidamente subordinado a uma gente mais estudada. Gente cheirosa, branquinha, que não anda de ônibus, metrô e CPTM e tem dinheiro conquistado com muita luta, mesmo que não consigam (ou não queiram) descrever detalhadamente como foi essa luta e quem foram os lutadores.

Lá do lado de cima da tabela, os mais cheirosos, muito graças a essências aquosas, classificam o “Seu Tião” como um ignorante que não sabe de nada da vida porque é analfabeto. Não sabe ler, escrever e não é bem informado pelas revistas de maior credibilidade. Que fique lá na favela procurando uma ONG para internar sua prole, ou dê conta de educar bem os filhos que fez mesmo sabendo que é pobre, se possível batendo nas crianças como a polícia bate em manifestante, para que não virem bandidos.

Disciplina na zona de rebaixamento é tudo! Porque nas zonas de classificação para Libertadores ou para a Sul-Americana os times ricos e médios desfrutam de proteção equivalente ao seu tamanho ou influência para evitar rebaixamentos, ganham ajudinhas em pênaltis inexistentes, inversões de mando, adiamento de partidas para ajustar elenco enquanto o campeonato corre para os demais. São grandes e médios, merecedores centenários de privilégios que a maioria rebaixável e das séries B, C, D e campeonatos estaduais dos rincões jamais poderão merecer, pois não lutaram para isso.

E no final das contas, aquele bando de pobres de fora das principais capitais são torcedores dos grandões, vibram com suas artimanhas, suas armações, seus acertos, às subtrações da nossa pátria-mãe tão distraída em tenebrosas transações. Os grandes podem. Eles são bonitos, vencedores, de sucesso e aparecem na TV com frequência. Também são donos da TV.

Até que um dia a Copa do Mundo dá a oportunidade de fazer o que essa gente limpa mais adora: felação em gente cheirosa que não fala português e deixa migalhas milionárias caírem no seu chão.

Brigam para ver quem vai se endividar mais com estádios inúteis. Como expulsar o “Seu Tião” do estádio do seu time, justamente agora que ficará perto de casa, para um público que pode pagar pelo menos R$ 100. Ou pior: pedir para prefeitura e governo estadual expulsarem toda a família de Sebastião da Silva do bairro em que vivem há décadas porque lá eles atrapalham a beleza da arena novinha, novinha.

- Saia daí e vá para Itaquá!

E no primeiro jogo do estádio do povo, os trens que levam para o evento maior de lambeção de ricos cosmopolitas abrigados nas leis suíças, toda vizinhança do Seu Tião, aquela mesma que todos os dias se espreme com 11 pessoas por metro quadrado, é impedida de chegar perto do seu transporte cotidiano para os branquinhos cheirosos chegarem confortavelmente à “Arena”.

No caminho, todas aquelas pessoas escolarizadas e bem informadas ensaiam gritos de torcida. Diferentemente do Seu Tião e amigos, que gritavam “Meu Time eô” nos velhos ônibus que caminhavam para os jogos de domingo no sentido Leste-Oeste, os bacharéis e cultos com MBA gritavam “Ei, presidente(a) que não gosto, vai tomar no cu”. Afinal, sabem fazer política mesmo no trem a caminho de um jogo de futebol.

Mesmo sem discursar, presidente foi ofendida na
abertura da Copa (Nilton Fukuda/Estadão Conteúdo)

Reclamam de tudo: transporte, saúde, educação, gastos públicos. Ignoram ter sido a primeira vez que andaram de coletivos, estarem naquele momento conhecendo o bairro pobre com frequentes enchentes e violência, terem estudado em colégios particulares caros do outro lado da cidade (proibido para “gente diferenciada”), não abrirem mão de atendimento numa clínica caríssima que preto só entra para fazer a faxina.

Que, apesar de reclamarem dos impostos que suas empresas pagam como se fossem sábios politizados, são privilegiados às custas de benefícios infindáveis que suas atividades recebem do governo chefiado pela presidente(a) que odeiam, a mesma condição que permite tremer de medo de deixar os filhos saírem na rua de casa sem segurança e os mandarem para se divertir na Disney, onde vão aprender a viver um sonho mais limpinho e se isolarem do mundo real, cruel e injusto.

Depois de falar mal sobre a coreografia de abertura do evento, atribuíram sua fraqueza à presidente(a) que não gostam, não aos organizadores, com ampla participação do governo estadual limpinho que tanto amam. Por que não uma escola de samba, com negras pobres mostrando a bunda para gringo? Depois posso reclamar que não sou puta, mas que essas pobres mostram um país de putas para os estrangeiros. Se destruir o gramado, o preto que nasceu pobre e hoje é rico tem obrigação de desempenhar o melhor futebol do mundo porque é bem pago para isso. Eu pago, eu tenho direito!

Seguindo o protocolo, anuncia-se a presença da chefe de Estado do país-sede. O grito anteriormente ensaiado no trem é entoado pelos cheirosos que usam os perfumes mais caros: “Ei, presidente(a) que não gosto, vai tomar no cu!” Emissoras de TV, jornais e revistas semanais, em campanha eleitoral, chegam ao orgasmo editorial.

Como mero detalhe há uma partida memorável. Um negro ex-pobre faz um gol contra e já surgem reclamações nas redes sociais: “tinha que ser preto mesmo”. O melhor jogador do time da casa, um negro ex-pobre, faz dois gols e vira o jogo. Muda-se o tema: “a presidente(a) que não gosto foi vaiada pelo povo!” Mais orgasmos editoriais e em murais.

INTOLERÂNCIA Médico cubano é vaiado ao chegar ao Brasil 
para trabalhar (Jarbas Oliveira/Folhapress)

Para terminar em grande estilo, um jovem universitário que trabalhava no evento foi abordado por membros dessa gente cheirosa que odeia preto que faz gol contra: “Como saio desse local esquecido por Deus?”

Um país de analfabetos letrados nos colégios mais renomados de suas cidades, graduados nas melhores (e piores) universidades, quiçá com mestrado e doutorado.

Nos dias a seguir, em Salvador e no Rio de Janeiro não há arquibancada para negros. Em Cuiabá e Manaus há mais brancos do que indígenas.

Meu respeito ao senhor, Seu Tião. Ao senhor.

Obs: Todas as informações são baseadas em fatos reais. Agradecimento especial a Moacir Trombelli e Filipe Jeronymo.

*Fabio Venturini é jornalista

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