*por Fabio Venturini
Desde 1978 a Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura não mais identifica a
alfabetização apenas como a capacidade de decodificar escritos e conseguir
redigir um pequeno trecho com sentido. Para a Unesco, o ser alfabetizado é
aquele com capacidade de interferir no seu meio, usando conhecimentos de
leitura, escrita, matemática e outras ciências. Aqui pelo Brasil ainda se usa a
ideia de “analfabetismo funcional”, muito forte no senso comum, mascarando na
verdade se tratar de pessoas politicamente inoperantes mas que sabem ler e
escrever.
Mas o que isso tem a ver com futebol? Talvez somente o leitor alfabetizado possa responder.
O analfabetismo está distribuído em todas as classes. Com o
“Seu Tião”, servente de pedreiro, por exemplo, devido a N condições
sócio-culturais, costuma gerar a sensação de inferioridade que coloca qualquer
senhor pobre e sua família no devido lugar social ao qual fazem jus, ou seja,
merecidamente subordinado a uma gente mais estudada. Gente cheirosa,
branquinha, que não anda de ônibus, metrô e CPTM e tem dinheiro conquistado com
muita luta, mesmo que não consigam (ou não queiram) descrever detalhadamente
como foi essa luta e quem foram os lutadores.
Lá do lado de cima da tabela, os mais cheirosos, muito
graças a essências aquosas, classificam o “Seu Tião” como um ignorante que não
sabe de nada da vida porque é analfabeto. Não sabe ler, escrever e não é bem
informado pelas revistas de maior credibilidade. Que fique lá na favela procurando
uma ONG para internar sua prole, ou dê conta de educar bem os filhos que fez
mesmo sabendo que é pobre, se possível batendo nas crianças como a polícia bate
em manifestante, para que não virem bandidos.
Disciplina na zona de rebaixamento é tudo! Porque nas zonas
de classificação para Libertadores ou para a Sul-Americana os times ricos e
médios desfrutam de proteção equivalente ao seu tamanho ou influência para
evitar rebaixamentos, ganham ajudinhas em pênaltis inexistentes, inversões de
mando, adiamento de partidas para ajustar elenco enquanto o campeonato corre
para os demais. São grandes e médios, merecedores centenários de privilégios
que a maioria rebaixável e das séries B, C, D e campeonatos estaduais dos
rincões jamais poderão merecer, pois não lutaram para isso.
E no final das contas, aquele bando de pobres de fora das
principais capitais são torcedores dos grandões, vibram com suas artimanhas,
suas armações, seus acertos, às subtrações da nossa pátria-mãe tão distraída em
tenebrosas transações. Os grandes podem. Eles são bonitos, vencedores, de
sucesso e aparecem na TV com frequência. Também são donos da TV.
Até que um dia a Copa do Mundo dá a oportunidade de fazer o
que essa gente limpa mais adora: felação em gente cheirosa que não fala português
e deixa migalhas milionárias caírem no seu chão.
Brigam para ver quem vai se endividar mais com estádios
inúteis. Como expulsar o “Seu Tião” do estádio do seu time, justamente agora
que ficará perto de casa, para um público que pode pagar pelo menos R$ 100. Ou
pior: pedir para prefeitura e governo estadual expulsarem toda a família de
Sebastião da Silva do bairro em que vivem há décadas porque lá eles atrapalham
a beleza da arena novinha, novinha.
- Saia daí e vá para Itaquá!
E no primeiro jogo do estádio do povo, os trens que levam
para o evento maior de lambeção de ricos cosmopolitas abrigados nas leis
suíças, toda vizinhança do Seu Tião, aquela mesma que todos os dias se espreme
com 11 pessoas por metro quadrado, é impedida de chegar perto do seu transporte
cotidiano para os branquinhos cheirosos chegarem confortavelmente à “Arena”.
No caminho, todas aquelas pessoas escolarizadas e bem
informadas ensaiam gritos de torcida. Diferentemente do Seu Tião e amigos, que
gritavam “Meu Time eô” nos velhos ônibus que caminhavam para os jogos de
domingo no sentido Leste-Oeste, os bacharéis e cultos com MBA gritavam “Ei,
presidente(a) que não gosto, vai tomar no cu”. Afinal, sabem fazer política
mesmo no trem a caminho de um jogo de futebol.
Mesmo sem discursar, presidente foi ofendida na abertura da Copa (Nilton Fukuda/Estadão Conteúdo) |
Reclamam de tudo: transporte, saúde, educação, gastos públicos. Ignoram ter sido a primeira vez que andaram de coletivos, estarem naquele momento conhecendo o bairro pobre com frequentes enchentes e violência, terem estudado em colégios particulares caros do outro lado da cidade (proibido para “gente diferenciada”), não abrirem mão de atendimento numa clínica caríssima que preto só entra para fazer a faxina.
Que, apesar de reclamarem dos impostos que suas empresas
pagam como se fossem sábios politizados, são privilegiados às custas de
benefícios infindáveis que suas atividades recebem do governo chefiado pela
presidente(a) que odeiam, a mesma condição que permite tremer de medo de deixar
os filhos saírem na rua de casa sem segurança e os mandarem para se divertir na
Disney, onde vão aprender a viver um sonho mais limpinho e se isolarem do mundo
real, cruel e injusto.
Depois de falar mal sobre a coreografia de abertura do
evento, atribuíram sua fraqueza à presidente(a) que não gostam, não aos
organizadores, com ampla participação do governo estadual limpinho que tanto
amam. Por que não uma escola de samba, com negras pobres mostrando a bunda para
gringo? Depois posso reclamar que não sou puta, mas que essas pobres mostram um
país de putas para os estrangeiros. Se destruir o gramado, o preto que nasceu
pobre e hoje é rico tem obrigação de desempenhar o melhor futebol do mundo
porque é bem pago para isso. Eu pago, eu tenho direito!
Seguindo o protocolo, anuncia-se a presença da chefe de
Estado do país-sede. O grito anteriormente ensaiado no trem é entoado pelos
cheirosos que usam os perfumes mais caros: “Ei, presidente(a) que não gosto, vai
tomar no cu!” Emissoras de TV, jornais e revistas semanais, em campanha
eleitoral, chegam ao orgasmo editorial.
Como mero detalhe há uma partida memorável. Um negro
ex-pobre faz um gol contra e já surgem reclamações nas redes sociais: “tinha
que ser preto mesmo”. O melhor jogador do time da casa, um negro ex-pobre, faz
dois gols e vira o jogo. Muda-se o tema: “a presidente(a) que não gosto foi
vaiada pelo povo!” Mais orgasmos editoriais e em murais.
INTOLERÂNCIA Médico cubano é vaiado ao chegar ao Brasil para trabalhar (Jarbas Oliveira/Folhapress) |
Um país de analfabetos letrados nos colégios mais renomados
de suas cidades, graduados nas melhores (e piores) universidades, quiçá com
mestrado e doutorado.
Nos dias a seguir, em Salvador e no Rio de Janeiro não há
arquibancada para negros. Em Cuiabá e Manaus há mais brancos do que indígenas.
Meu respeito ao senhor, Seu Tião. Ao senhor.
*Fabio Venturini é jornalista
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