sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

PORTUGUESA - Morri há dez anos

Temos muitas mortes durante a vida. Perdas, traumas, lutos. O futebol foi praticamente minha identidade por muitos anos, até que, há uma década, eu morri. Eu, torcedor, não resisti ao assassinato a sangue frio, com requintes de crueldade, sem chance de defesa. Há 10 anos, uma bala atingiu meu coração. 

Desde então, o torcedor que fez de mim o que eu era não vive mais; deu lugar a um cínico, alguém oco, que não se importa com as dores parecidas. "Ah, caiu? Lamento. Quando fomos derrubados, não percebi seu apoio. Foda-se!", mas não como dizem em Portugal.

Eu ficaria horas pensando em algo que jamais seria melhor que as palavras do gigante Luiz Nascimento, esse monumento do jornalismo brasileiro. Queria ser como ele, não só pelo talento, mas com a mesma fé. Mas não tenho. Não tenho nada há 10 anos. Eu morri.

sábado, 2 de dezembro de 2023

Pílulas amadoras - 7

*por Humberto Pereira da Silva

A campanha do Botafogo nesse Brasileirão é um dos fatos mais insólitos que vi no futebol. Momentos em uma partida, um jogo ou mesmo uma sequência de jogos, podem apresentar situações inusitadas. A derrota do Brasil na Copa de 2014 para a Alemanha é um bom exemplo.

Mas o que acontece com o Botafogo se refere a uma temporada. Quer dizer, 36 dos 38 jogos previstos. O melhor desempenho na história dos pontos corridos no primeiro turno. No segundo, no entanto, supera apenas o América-MG e o Goiás.

Depois da virada que sofreu do Palmeiras, em especial, a sucessão de resultados é simplesmente inacreditável. O extremo do inacreditável foi o empate contra o rebaixado Coritiba.

Leio e ouço tentativas de explicação para o que acontece com o Botafogo. As explicações são as mais variadas e se multiplicam. Decisões erráticas da cúpula, leia-se Textor/SAF, inexperiência do TIME em momentos decisivos... Enfim, não faltam tentativas de explicação. 

Não tenho nem longuinquamente a pretensão de mais uma. Há uma interrogação, no entanto, que me parece um ponto cego. Como foi possível a campanha do Botafogo no primeiro turno? 

É como se no insólito houvesse abaixo uma camada mais insólita. O gol de empate do Coritiba 42 segundos depois do gol do Botafogo, já marcado para além dos acréscimos, é inacreditável, como ouvi gritar o narrador global. Mas esse evento absolutamente casual se repetiu inúmeras vezes a favor do Botafogo nas 19 rodadas do primeiro turno. 

No primeiro turno, contra o Palmeiras, houve um gol anulado pelo VAR e um pênalti perdido pelo Verdão. Numa jogada casual e até despretensiosa, gol de Tiquinho e vitória do Botafogo.

A campanha do Botafogo no primeiro turno, para mim ao menos, é o insólito do insólito. Algo que me faz pensar na fantasia Alice no país das maravilhas e sua lógica do absurdo. 

***

Palmeiras campeão? Pois é, nesse Brasileirão a palavra "favorito" perdeu o sentido. Num nível bem menor, e sem o foco do Botafogo, o Atlético mineiro é quase o espelho invertido do Fogão. Constante na irregularidade ao longo dos dois turnos, o Palmeiras pode surpreender nas duas rodadas que restam. Eu, no entanto, não me surpreenderia. 

Cravar Palmeiras campeão é tão absurdo quanto esquecer o quanto os resultados desse Brasileirão têm sido absurdos. Num campeonato tão surpreendentemente absurdo, o Fluminense sem qualquer pretensão não é um mero sparring para o Palmeiras cumprir tabela. E o boato em torno de possível saída do Abel para o Catar parece piada pronta a duas rodadas do fim...

*Humberto Pereira da Silva é professor de Ética em Jornalismo

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Pílulas amadoras - 6

*por Humberto Pereira da Silva

Reprodução - Youtube

Passada a data FIFA, e a seleção... volta o Brasileirão com contas e tabelas finalmente ajustadas. Jogos com atenção para a parte de cima e a de baixo na tábua de classificação. 

Na parte de baixo uma fixação, que mistura crença, superstição, matemática e certa preguiça mental: quem fizer 45 pontos não cai. Seguindo esse "número mágico", o Fortaleza na 12ª posição, com os tais 45 pontos, não mais correria risco de cair... 

Não consigo imaginar todos os cruzamentos nas rodadas finais. Mas nas próximas rodadas se o Bahia perder e, vendo a tabela, o Fortaleza só cai se levar solenes goleadas... E ainda há o Cruzeiro, que complementa a rodada medindo [o que sobrou das] forças com o desesperado Goiás.

"Matematicamente", sim, o Fortaleza pode ser alcançado pelo Bahia. O São Paulo com 46 pontos também...

Cruzando todos os resultados possíveis é o caso de dizer que o Fortaleza ainda corre risco porque não atingiu o "número mágico? Ora, tendo superado o dito cujo, o Tricolor paulista sendo superado por Bahia e/ou Cruzeiro "matematicamente" não corre risco numa combinação maluca de resultados?

É preciso pôr no papel TODAS as combinações possíveis de resultados nas rodadas ainda vindouras para saber se ele, São Paulo, ainda pode cair, pois "matematicamente"... ainda pode ser alcançado por quem está, como dizem em algures e alhures d'além mar, abaixo da linha d'água. 

Quero dizer com isso que quando se fala em "número mágico" é preciso efetivamente fazer contas. Num campeonato com resultados tão surpreendentes, vejamos como foi a rodada 35. A goleada do Bahia sobre o Corinthians, além de Vasco, Santos, Inter e Fortaleza pontuando, e São Paulo x Cuiabá deixou de ser mero cumprimento de tabela. 

A campanha do Botafogo no segundo turno [n.e: 15 de 48 pontos] deve servir de lição para que uma expressão como "número mágico" não seja entendida literalmente: um número... mágico. Por óbvio, onde há mágica, não há matemática.

*Humberto Pereira da Silva é professor de Ética no Jornalismo.

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Pílulas amadoras - 5

*por Humberto Pereira da Silva

Foto: Gabriel Machado/AGIF/Folhapress

Como é óbvio, gosto muito de futebol e acho muito legal mesmo escrever, conversar sobre o assinto. mas os acontecimentos desse final de semana me desanimaram um bocado. Coritiba x Cruzeiro no final aquela briga entre torcidas; depois, Grêmio x Corinthians e o Alessandro, ex-jogador e atual ocupante de cargo de diretor do Corinthians, tenta invadir a sala do VAR [nem era onde estava o árbitro auxiliar, mas o equipamento...]

É desanimador. Ao longo do campeonato outras cenas se somam. De qualquer forma, terminada a rodada e só o Palmeiras (62) se saiu bem. Entre os que estão envolvidos diretamente com o título, foi o único que ganhou. O Atlético Mineiro (57), um pouco abaixo, ganhou e tem chance, mas acho difícil, pois tem só quatro jogos a realizar. O Flamengo (57) se complicou com o empate no Fla-Flu, mas com cinco jogos, virtualmente está a dois pontos do Palmeiras. A diferença de um jogo, uma rodada, e muita coisa muda. E ainda há a Data FIFA à mistura.

Sobre o Palmeiras? Se eu fosse palmeirense, ficaria bem apreensivo. Acho que essa é a temporada mais inconstante da era Abel. Não dá para confiar e deve perder pontos nessa reta final, mas os concorrentes também. Como diz a malta da terra de onde veio parte da família do Marcos Teixeira, editor deste blog e meu ex-aluno na faculdade, ao fim e ao cabo o campeão será... como o Flamengo em 2020, por demérito dos concorrentes. Ou então porque calhou de estar na liderança ao fim da última rodada.

*Humberto Pereira da Silva é professor de Ética no Jornalismo.

sábado, 11 de novembro de 2023

Pílulas amadoras - 4

 * por Humberto Pereira da Silva

Foto: Reprodução/Botafogo TV

Com os resultados da rodada, dá para cravar: o Botafogo e um caso (case, para brincar com anglicismo). Caso, bem entendido, que valeria ser SEMPRE lembrado não tanto em razão da derrocada espantosa no segundo turno do Brasileirão, mas sim como foi possível a campanha do primeiro turno. 

Como foi possível a um time que até o início do Brasileirão não revelar qualquer indício de favoritismo num campeonato tão equilibrado ter desequilíbrio como desequilibrou? O que me vem é o notável absurdo de praticamente ninguém ter questionado haver algo fora da ordem na campanha do primeiro turno. 

O caso Botafogo faz pensar duas coisas no calor da hora. Num campeonato longo uma equipe não se monta de uma hora pra outra, do nada, para manter regularidade até o fim. Outra coisa: futebol brasileiro há variáveis e variáveis que não podem ser subestimadas. O interesse no Brasileirão é fortemente condicionado por exemplo pelo envolvimento das equipes da Libertadores, na Copa do Brasil... é só olhar a tabela e vermos o de estão o Flu e o São Paulo. 

Essa é tão só UMA variável. Mas que para mim dá um tanto de sentido para explicar o case Fogão.

*Humberto Pereira da Silva é professor de Ética no Jornalismo.

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

BENFICA - a noite das vergonhas europeias



Prostrado. Humilhado. Vergado. Não faltam adjetivos para descrever a terrível prestação benfiquista nesta edição da Liga dos Campeões, mas poucas vezes se viu em campo uma equipa tão vulgar, indigente. Ainda mais considerando que este espantalho em forma de time de futebol - ou seria o contrário? - carrega no peito três estrelas, cada qual para uma dezena de títulos nacionais, e a reputação histórica de ser bicampeã europeia, além de outras finais disputadas antanho.

Lá se vai muito tempo, sei, desde que a maldição de Béla Guttmann caiu sobre a cabeça dos avaros dirigentes encarnados, mas nada faria supor que depois da magnífica demonstração de como jogar futebol vista na temporada passada, um rascunho formado por 11 jogadores estaria a vestir a mesma camisola.

A noite no Anoeta foi de estarrecer, de petrificar, de fazer corar de vergonha o mais pessimista dos portugueses. E olhe que falo de uma característica praticamente inata ao povo português, ainda mais quando há do outro lado 11 gajos a representar o futebol espanhol e uma bola no meio. 

A Bola, maior jornal da Terrinha dedicado ao chamado desporto rei, fez uma compilação do que os jornais da Espanha disseram. A ver:

As:
"O Benfica, um brilhante bicampeão europeu, ajoelhou-se diante de uma Real Sociedad avassaladora, o que lhe deu uma lição histórica. Um banho frente a um rival que nada disse (...) O volume do seu futebol foi tão grande que rompeu os tímpanos dos lisboetas. Do aquecimento até o último apagão, foi um turbilhão que marca a época"

"Defensivamente, a equipa vermelha nem sabia para onde se virar. O Benfica ficou mumificado, era um fóssil, a agonia levou-o para uma caverna do horror. Para isso contribuiu o seu treinador, que colocou Neves na lateral, algo para o qual não está preparado, e deu a Barrenetxea uma pista para brilhar. Um cervo a dormir a sesta era mais assustador do que essas águias comidas por traças. (…) Neves foi um espectador na primeira fila. O que fazia ali o pobre rapaz?"

Sport:
"Exibição, banho, 'masterclass' de futebol, inúmeras qualificativos que demoraríamos mais tempo a procurar do que o Real levou para vencer um campeão da Europa e de Portugal como o Benfica. Parecia um jogo de profissionais contra juniores numa meia hora mágica e histórica, daquelas raramente vistas no mundo do futebol."

De certo, o leitor há de perdoar a reprodução do que parte da imprensa espanhola viu e disse, mas peço que notem o respeito para com o distintivo humilhado: 'brilhante campeão europeu", que venceu Barcelona em 1961 e, já com Eusébio, o mítico Real Madrid em 1962. Dois distintivos já enormes. O Barça com Ramallets, Evaristo de Macedo, Luis Suárez e os magiares Czibor, Kocsis e Kubala; o Real Madrid, pentacampeão, com Puskás, Di Stéfano, Santamaria e Gento.

Aquele Benfica, de Germano, Cavém, Simões, Coluna, José Augusto, José Águas e Eusébio, que mantém a reputação encarnada imaculada, nada tem a ver com este apanhado vulgar de jogadores de vermelho que ao cabo de meia hora já perdiam por 0-3, fora os dois gols anulados e o pênalti desperdiçado. O placar foi condescendente demais para a pobreza e absoluta falta de argumentos levada pelos de Schmidt a San Sebastián.

Há muito trabalho pela frente e o primeiro passo é admitir o fracasso do projeto de equipa levado a campo para esta temporada, seja com três centrais e Florentino a ter que varrer tudo sozinho e João Neves como extremo e presa fácil e entregue a Barrenetxea, que fez com ele o que quis, como quis e quando quis; seja com a linha de três médios e um avançado solo que não pressionam e deixam tudo a estoirar nos de trás, ora Florentino, ora Kokçü. Gastou-se quase 60 milhões de euros em reforços até aqui desnecessários e não há um lateral direito de raiz para colmatar as ausências de Bah pelas agruras físicas, tampouco um do outro lado que minimamente mimetize o que fazia Grimaldo, perda já cantada com um ano de antecedência. Seu substituto é Jurásek, o defesa mais caro da história do clube, que perdeu a bola 28 vezes em pouco mais de 60 minutos em campo, segundo dados do Goal Point.

Roger Schmidt, brilhante na sua temporada de estreia, parece não querer ver o naufrágio à sua frente e agarra-se a frases fáceis como "não é que o planejamento foi errado, os lesionados fazem falta" ou "realmente, não merecemos a classificação", como se houvesse viv'alma a pensar o contrário. O capitão do barco se mantém fiel às suas ideias e só não está a tocar o violino enquanto a embarcação afunda porque o que tem, quando muito, é uma tocata com instrumentos desafinados.

Ao lado, mas nem por isso menos importante, registre-se a vergonha causada por imbecis que atiraram tochas nos adeptos locais, o que poderia ter causado uma tragédia como a que aconteceu em 1996, na final da Taça de Portugal, entre Sporting e... Benfica!  O fracasso do projeto desportivo quando se tem tudo à mão é de se lamentar, mas a falência cultural espelhada em indivíduos que viajam, não pelo seu clube, mas por uma realização pessoal tendo os pés fincados na violência, este sim é de se envergonhar.

Que vergonha, Benfica! 

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

BOTAFOGO - Sobre meninos mimados

 Reprodução/Premiere

Se o Botafogo conseguir a proeza de perder um campeonato no qual teve 13 pontos e de vantagem para o segundo colocado, John Textor e os líderes do elenco terão muitos o que explicar: Textor, o dono, porque não segurou o técnico Bruno Lage; os líderes, por terem derrubado o treinador e bancado Lúcio Flávio, que teve boa passagem dentro de campo pelo próprio Fogão, mas nem treinador é. 

O trabalho de Lage, se comparado ao do antecessor Luís Castro, era ruim, mas em momento algum o elenco comprou as ideias dele. No Benfica, que ele pegou a duas rodadas da final do turno e sete pontos atrás do líder, terminou campeão e com mais de 100 gols num campeonato com 34 rodadas, e ainda teve que enfrentar os quatro adversários mais bem colocados na tabela fora de casa. E venceu todos eles. Lage poderia não ser o melhor, mas está longe de ser despreparado.

AVASSALADOR Bruno Lage foi campeão português pelo Benfica
(Foto: Jorge Amaral/Global Imagens / Esporte News Mundo).




Textor não quis bancar um treinador interino, Cláudio Caçapa, apesar das quatro vitórias em outros tantos jogos, mas o levou para ser treinador de seu time na Bélgica, o Molenbeek. Buscou outro português, talvez pela grife, mas com experiência para tocar o barco. E este barrou o artilheiro Tiquinho Soares e o mundo caiu.

Tiquinho, craque de última hora no Campeonato Brasileiro, teve uma boa passagem pelo FC Porto, onde era bem quisto pela torcida, mas longe de ser o jogador indiscutível no qual se tornou aqui. Lage o colocou no banco e teve o tapete puxado publicamente pelos líderes do elenco.

E depois? O Botafogo melhorou? Instável, segue derrapando e com seríssimos problemas para lidar com a pressão causada pelo estupendo trabalho de Castro, que se foi, como tantos outros por aí afora para receber o dinheiro árabe e para treinar Cristiano Ronaldo. Foi prejudicado contra o Palmeiras? É discutível e pode ser que sim, mas não há erro de arbitragem que justifique um time que abriu 3x0 ainda no primeiro tempo (e ficou barato) e tinha um pênalti a favor aos 37 do segundo tempo e com 3x1 no placar.

Se o Botafogo conseguir perder o campeonato, será não só a maior pipocada da história do futebol brasileiro, como também será a prova de que elencos mimados podem estragar um grande trabalho. E, neste sentido, Textor e os líderes do elenco terão sido os maiores responsáveis.

Pílulas amadoras - 3

por Humberto Pereira da Silva*


SOBRENATURAL DE ALMEIDA O personagem de Nelson Rodrigues
esteve em campo no Nilton Santos (Foto: Thiago Ribeiro/AGIF)

O jogo também é ganho fora de campo

No final do primeiro turno, um colega crítico de cinema que admiro e botafoguense escreveu no Facebook: "Não quero comemorar antes da hora, mas que loucura é esse Botafogo".

Mantivemos uma conversa virtual e destaco aqui um trecho do que escrevi para ele: "Mas, para mim, a imprevisibilidade no futebol, tão previsível, é o que me faz esperar pelas próximas 10 ou 12 rodadas pra ver o que vai acontecer com o Botafogo".

E, na sequência da conversa, fiz essa observação: "Mas, mas... sobressaltos, inconstâncias, irregularidades estão no caminho nas próximas 12 ou 13 rodadas. Isso pra mim o previsível... e, bem,... apenas especulação: jogos de seis pontos e o Bota não pode nem longinquamente pensar em perder para o Palmeiras e Grêmio. Pois teria que contar com a irregularidade deles pra não ver essa diferença diminuir pra seis pontos... ora, ora, caro... seis pontos no futebol brasileiro e toda sorte de VAR entra em campo... rs".

Nada de vã vanglória no vaticínio. Todo vaticínio, por princípio, se expõe ao erro. Senão, não seria vaticínio.  Acertar não é senão probabilidade. Mas, confesso, a expulsão de Adryelson me espantou. 

Até a expulsão, levando em conta a torcida, e não a fria probabilidade, o Fogão era campeão, pois num jogo de seis pontos punha nove na frente do segundo colocado faltando somente 7 rodadas (fora a partida a ser jogada com o Fortaleza). A entrada do VAR em campo decidiu a sorte do jogo. 

E sobre o VAR e arbitragem, só pra completar, gostaria de saber a opinião de Abel Ferreira e seu auxiliar, que no meio do campeonato sustentou: "Sistema quer evitar o bi do Palmeiras no brasileiro". 

Futebol, em todo lugar, é um jogo jogado dentro e fora de campo. "Sistema" não é folclórica teoria da conspiração. Abel, seu auxiliar e o Palmeiras sabem isso. Quem quer que acompanhe o futebol com atenção, para além do coloquial "jogo roubado", sabe isso. 

Impossível afirmar que calculadamente o "Sistema" se intimidou frente ao Palmeiras e... no momento de uma decisão controversa o VAR... Mas, a ação do VAR em momento me faz lembrar a frase de Júlio César: "A mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta".

A vitória do Palmeiras, 0 a 3 contra e, depois, 1 a 3 tendo o adversário um pênalti par abater já perto do minuto 40 do segundo tempo, foi épica. Mas o Palmeiras também ganhou fora de campo.

* Humberto Pereira da Silva é professor de Ética em Jornalismo

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Pílulas amadoras - 2

por Humberto Pereira da Silva*


ALERTA LIGADO Derrota em casa para o Cuiabá impede
Fogão de alargar liderança (X- Cuiabá EC)

O Botafogo pôs 13 pontos na frente do segundo colocado, no fim do primeiro turno do Brasileirão. E, vejamos, a diferença então do segundo para o primeiro da zona de rebaixamento era de 12 pontos. 

Chegando no último quarto do campeonato, Fogão está 6 pontos à frente do segundo, o Palmeiras (tendo um jogo a mais a ser disputado). Por sua vez, a turma de Abel Ferreira está 21 pontos na frente do Goiás, primeiro na zona de rebaixamento. 

Há algumas lições que se pode extrair, e que são solenemente desdenhadas. Não há termo de comparação entre o Brasileirão e as principais ligas europeias. O Atlético Mineiro é 6º colocado, ao longo do campeonato chegou a namorar a zona do rebaixamento e na reta final só alguém completamente insano para cravar que teria menos chance de ser campeão que, digamos, Grêmio e Flamengo. Isso é inconcebível nas grandes ligas da Europa. 

Outra lição. No Brasileirão, é tão inconcebível especular que o Atlético não é candidato ao título no último quarto do campeonato quanto inconcebível o Fogão terminar o primeiro turno 13 pontos na frente. Ora, duas temporadas atrás o Fogão estava na Série B. Na temporada passada fez campanha pra se manter na Série A. Esse ano no inexpressivo Carioca não existiu. E de repente, não mais que de repente, é tratado ao fim do primeiro turno do Brasileirão como se fosse o Bayern na Bundesliga, ou o Manchester City, na Premier League.

O futebol jogado no Brasil é sujeito a chuvas e trovoadas. Isso o torna paradoxalmente tão imprevisível quanto previsível. No caso, uma previsibilidade que é até óbvio ululante, para recordar Nelson Rodrigues, brilhante cronista de futebol. Se o Fogão fizesse um segundo turno como o primeiro seria tão estranho quanto supor que o Fluminense, que já esteve entre os primeiros e agora só pensa na Libertadores, esteja na briga pelo título. Ora, na fria projeção dos números, o Flu está apenas 4 pontos atrás do Atlético Mineiro.

Ps: alertou-me o editor deste blog, Marcos Teixeira, que "o ponto de quebra do Botafogo foi a troca do treinador (Claudio Caçapa, interino, ex-ídolo do próprio clube e tampando o buraco deixado pela saída do Luís Castro, seduzido pelo dinheiro árabe e pela possibilidade de treinar Cristiano Ronaldo) por outro outro português, Bruno Lage, somente pela grife. Deu no que deu e Caçapa foi para o futebol belga para trabalhar no Molenbeek, que é do John Textor, dono do clube. Ele saiu depois de quatro vitória seguidas e o título bem encaminhado". Se for campeão, o será tendo tido quatro treinadores durante a campanha, mais um dos inúmeros paradoxos que tornam o Brasileirão previsivelmente imprevisível.

* Humberto Pereira da Silva é professor de Ética em Jornalismo

Pílulas amadoras - 1

por Humberto Pereira da Silva*

SEM ESCALAS Rebaixado em 2007, Corinthians iniciou a recuperação que culminaria em 2012 com o título mundial (Foto: Daniel Augusto Jr.)


A vitória de Pirro

Briga terrível na zona do rebaixamento. Duas vagas em disputa cabeça a cabeça. América e Coritiba virtualmente fora da disputa. Já têm ingresso quase garantido para a Série B. Vasco, Goiás, Santos, Bahia e Corinthians são os candidatos mais a sério às duas vagas restantes. A partir daí, Cruzeiro e Inter, imagino poucas chances de sucesso nessa disputa. Com cinco e  seis pontos na frente do primeiro na zona do rebaixamento, respectivamente - e a Raposa com um jogo a mais a ser disputado -, são três rodadas restando oito. Não que Cruzeiro e Inter tenham tantos méritos, mas contam que os de baixo dificilmente terão três rodadas sem derrota. 

Uma questão do penso da imprensa que me deixa encafifado: qual o problema de disputar a Série B? Óbvio que ignoro o fator grana no obscuro mundo do dinheiro que transita no futebol. Se ignoro o fator grana, fica o da vergonha. Uma temporada fora da "elite". Mas por que o fator humilhação se sobreporia à organização de um time que da série B se candidataria ao título na temporada subsequente? Vide case Fogão, duas temporadas atrás na Segundona. Equipas como Vasco, Santos... na falsa "elite", ano que vem é como a famosa frase de Pirro, comandante romano depois de ganhar batalha com grandes perdas: "mais uma vitória dessa e estou perdido".

*Humberto Pereira da Silva é professor de Ética em Jornalismo

terça-feira, 12 de setembro de 2023

PORTUGAL - Do quase nada ao quase tudo, Portugal à Portugal fez história no Algarve

NOITE DOS ABRAÇOS Esta foi a cena mais repetida na
histórica noite algarvia (Soccrates Image/Getty)
 

Um Portugal à Portugal é o que sempre esperamos, embora saibamos que há um quê de teimosia lusitana nesta espera quase sempre infrutífera, como a que nos faz ficar à espreita de que D. Sebastião volte de Marrocos para gritarmos, com o indicador na sua direção: EU SABIA QUE VOLTARIAS!

Como quase sempre nunca é nunca, ele veio! Não, o Rei não voltou do Norte da África. Quem apareceu foi uma atuação digna do poderio de quem leva as cinco quinas ao peito pode apresentar. Digna, não! Chamemo-la pelo nome: histórica, a maior goleada de sempre. E logo contra um adversário cuja mansidão não se adivinharia pela classificação. Os 10 pontos que colocam Luxemburgo a sonhar em estar pela primeira vez na fase final de uma competição sugeriram um jogo complicado, como o foi o encontro sofrido e sofrível com os eslovacos sexta-feira passada, com pontos e organização para discutir olhos nos olhos pela cimeira do grupo com a ainda engripada máquina portuguesa, que mostrou em Bratislava que muito talento não forma equipa. 

Era preciso mudar. E assim foi: o treinador espanhol Roberto Martinez, ainda à procura de entender como se canta o fado da bola do lado de cá da Península Ibérica, apresentou uma revolução no onze, com cinco alterações, quatro por opção e uma pela necessidade imposta pelo segundo cartão amarelo que o capitão Cristiano Ronaldo viu ao quase esfregar os pitons da bota na fuça do goleiro eslovaco Dúbravka quando as pernas não acompanharam-lhe o raciocínio e a bola escapou do irremediável destino, cantado já por 123 vezes, mas que tem teimado a falhar conforme o tempo avança.

É o fado de todos nós, afinal.

Deixando de lado o capitão que tanto nos deu, Gonçalo Ramos, que nasceu em Olhão, a 18 km do sítio da partida, já havia sido anunciado pelo selecionador tão logo acabou o jogo anterior. Diogo Dalot foi da direita para a esquerda, no lugar ocupado por João Cancelo, que foi ter no de Nélson Semedo, no banco de suplentes, saltando o jogador do Wolverhampton para o onze. Quem também começou a partida foi Gonçalo Inácio, deixando Antonio Silva sentado ao pé do treinador. No meio, Danilo rendeu Palhinha e Vitinha foi trocado por Diogo Jota, na mais radical das alterações. 

A saída do médio do PSG possibilitou que Bruno Fernandes e Bernardo Silva, dois dos seis sobreviventes iniciais (além de Dalot, Diogo Costa, Rúben Dias e Rafael Leão foram titulares nos dois jogos), tivessem liberdade para estar onde mais lhes apetecesse, desde que em combinações, formando então um diabólico 4-1-4-1, que variava para 3-4-3 de acordo com o lugar onde estivesse Danilo, ora trinco, ora terceiro central a sair jogando, resolvendo um dos problemas vistos na capital eslovaca: a falta de flexibilidade da equipa. Qualquer que fosse a definição numérica, que tanto engessa reflexões e discussões, haveria de ter mais tipos de verde e vermelho no mesmo sítio da bola do que os gajos de branco. Outro aborrecimento é o que se tem quando Cristiano joga: se por um lado tem-se o maior artilheiro do futebol de seleções da história, o que demanda mais atenções dos contrários, do outro perde-se muito da capacidade de pressionar a saída de bola e, tendo-a roubado nas proximidades da área, terá sempre, ou na maioria das vezes, os pés de Bernardo e Bruno a decidir-lhe os caminhos.

Em resposta, Luc Holtz, que ocupa o cargo de treinador de Luxemburgo há 13 anos e é um dos responsáveis por transformar o tradicional saco de pancadas em sério interessado em estar na Eurocopa que terá lugar na Alemanha - quem duvida, que olhe os últimos resultados e a posição na tabela -, apresentou uma dura linha de cinco a guarnecer os quatro defensores à frente do guarda-redes Moris e apenas o jovem Alessio Curcis no "ataque" (não contei, mas não me surpreenderei se ele tiver tocado na bola mais que dez vezes), imaginando povoar o setor onde Bernardo Silva e Bruno Fernandes trabalham. O problema para ele é que ninguém saberia dizer que lugar seria este, pois todo o relvado do belíssimo estádio do belíssimo Algarve serviu de passarela para os gajos que jogam cada um num rival de Manchester, mas davam a impreesão de que jogam juntos desde alguém os colocou pela primeira vez ao pé de uma bola.

Daí para a maior goleada de sempre da seleção Portuguesa foi mais natural que pintar os bigodes do tinto do vinho. Os dois primeiros ataques, mesmo que tivessem demorado um bocadinho, resultaram em golos: Bruno Fernandes bateu escanteio rasteiro para a área e a bola voltou pra ele, que ajeitou e colocou de três dedos na cabeça de Gonçalo Inácio, como num treino banal nos tempos em que o defensor era uma promessa da base do Sporting, para destravar o marcador. Depois, a asfixiante pressão fez com que Bruno Fernandes mordesse e buscasse Bernardo Silva; dele para os pés de Gonçalo Ramos e, deste, para as redes e o jogo já caminhava para uma vitória tranquila. O gajo de Olhão tem olhos grandes para o golo.

Mas usemos o adjetivo histórica: após dois desperdícios de Diogo Jota, o trator Rafael Leão aproveitou o espaço deixado por Diogo Dalot, que afunilava e abria uma autêntica pradaria para Leão - ou leopardo? -, que fez o que de melhor sabe fazer: engoliu duma só bocada dois pobres defensores, presas fáceis que estavam à frente e, muitos metros depois, e com eles lá para trás, encontrou Gonçalo Ramos na área; o giro, o drible, a noção de onde estão ele, os adversários, a bola e o gol para juntar estes dois e fazer o terceiro, tudo isso num espaço de tempo que seria insuficiente para comportar a frase mais justa para descrever a jogada: Que golão do caraças! No final do primeiro tempo, Bruno Fernandes resolveu que seu pupilo dos tempos em que a academia do Sporting ainda não tinha o nome do CR7 não ficaria atrás do outro Gonçalo, o que foi forjado para os golos no Seixal, e o defensor com coração de artilheiro também bisou.

Mesmo resolvido em 45 minutos, o jogo tem ao menos 90 - ou mais de 100, como tem sido depois da Copa. Passados 12 minutos desde a volta do recreio, os lusos resolveram atrair os oponentes, que, verdade seja dita, jamais abdicaram de jogar ou foram violentos, roçando a inocência e foram mais plateia do que propriamente adversários. A bola passeou pelos três centrais - "superioridade numérica em todos os setores do campo" é o mantra que deveria estar escrito na parede de toda a gente que lida com este negócio de bolas e pés - e veio ter cá em Nelson Semedo, que convidou Bruno Fernandes e Bernardo Silva para o picadinho. Bola aqui-e-logo-ali, foi o suficiente para desmantelar o que sobrou da defesa e o passe longo do craque do Manchester United foi ter no rival do Liverpool, Diogo Jota; este levou, ajeitou com a cabeça a soltou o sapato para a mão cheia de golos.

Se a intenção de Roberto Martinez ao convocar os agora barcelonistas João Cancelo e João Félix quando estes ainda eram estorvos de seus antigos treinadores era dar-lhes confiança, nada mais coerente que lançá-los contra adversários tão mansinhos, rendendo Nelson Semedo e Gonçalo Ramos, provando a quem duvida que o comandante de ataque pode sim sair antes do fim do jogo sem reclamar, o que é quase uma novidade para toda uma geração de torcedores em Portugal. O benfiquista de coração Bernardo Silva, que espalhou seu perfume em campo, deu lugar a outro cujo músculo cardíaco também é encarnado, embora dedique seu talento ao Braga, Ricardo Horta. Neste instante, com Portugal tendo três dos dez da linha frios, Luxemburgo teve sua única chance de gol com o luso-luxemburguês de raízes angolanas e destaque na Bundesliga, Leandro Barreiro, mas Diogo Costa largou as palavras cruzadas a tempo de evitar o golo com uma boa defesa.

O lance seguinte foi mais uma das mostras das valências de Portugal quando joga à Portugal: Rúben Dias esticou, ainda de seu campo, a bola para Diogo Jota e este dominou, ajeitou o corpo e serviu para Ricardo Horta, como se o esférico fosse uma bola de Berlim salpicadinha de açúcar. Se José Silvério tivesse narrado o jogo, diria que "a bola chegou pedindo me chuta, me chuta, me chuta e ele chutou! Um golaço de Ricardo Horta, no ângulo de Moris, que nada pôde fazer. Moris (sobe o BG), vai buscar! Portugal, impiedoso, tem seis; Luxemburgo não tem nada, Wanderley Nogueira!" [n.e. que saudade da narração do Pai do Gol!].

O sétimo gol de Portugal, já com "árabes" Otávio e Rúben Neves nos lugares de Rafael Leão e Danilo - a essa altura, o terceiro central a buscar a bola já era desnecessário, uma vez que Luxemburgo estava em contenção de danos -, foi o primeiro e único a não constar o nome do assistente, já que Diogo Jota buscou João Félix para a tabela, mas este passou da bola e ela, rebatida por um defensor que talvez nem sabia direito onde estava, mas certamente não era onde queria estar, sobrou para o camisola 21 dizer "que história é esta, pá? Não são só os Gonçalos bisam!"

Uma prova incontestável de que o plano de Roberto Martinez roçou a perfeição é que, mesmo com os olhos postos na baliza contrária o tempo todo, o primeiro impedimento do jogo aconteceu somente no minuto 38 do segundo tempo. Atordoado, Luxemburgo tentou sair trocando passes, mas o apetite português era insaciável e Ricardo Horta roubou a bola, avançou contra a defesa já capitulada e achou Bruno Fernandes. Quem deu três passes para golos merece também o seu, não é mesmo? O placar já igualava as maiores goleadas de sempre de Portugal: 8-0 contra Liechtenstein, em 1994 e 1999, e Kuwait, em 2003. Se não era o suficiente para ombrear os 10-0 que Portugal, ainda incipiente, levou nos cornos da Inglaterra (1947) e da Áustria (1953), ao menos faltava um para, além de marcar a maior vitória de sempre da equipa das Quinas, igualar o histórico 9 a 0 da Espanha no jogo classificatório para a Copa da Itália que serviu como empurrão (estímulo seria um eufemismo dos mais desapropriados) para transformar de vez o chutar a bola com uma caneta na orelha. E este veio com a classe de que se espera de João Félix desde que ele despontou no Benfica de Bruno Lage: passe a receber de Rúben Neves em corrida paralela à linha de fundo, a um ou dois metros da entrada da área, um toque para dominar, dois para encontrar a brecha e o terceiro para soltar a paulada, em arco, cercado por seis, para fazer o 9 a 0, n'altura, Luc Holtz, que abandonou seu posto no oitavo tento, já havia voltado ao bance de suplentes a tempo de contemplar a arte de Félix.

No sexto jogo de Martinez, a sexta a vitória e o principal: um futebol à Portugal. Na véspera, o treinador disse que "é importante para mim conhecer melhor os jogadores e aquilo que podemos fazer para melhorar a flexibilidade tática". O desafio é fazer o mesmo tendo Cristiano Ronaldo a titular, e ele deverá sê-lo em outubro, quando Portugal receber a Eslováquia no Dragão, casa do Porto, no jogo  em que, caso vença novamente, o passaporte lusitano será carimbado para a sua nona participação em Eurocopas, a oitava seguida. Eis a dúvida: um futebol novamente à Portugal, como o da belíssima noite algarvia, ou o aborrecimento de noventa e tantos minutos que vez ou outra se impõe para fazer toda a malta duvidar de si? Pensando bem, nada mais à Portugal que isso.

sábado, 9 de setembro de 2023

BRASIL - Sobre Neymar, Pelé, revisionismos, recordes e o Anticristo do Jornalismo Esportivo

A MARCA DO REI  Neymar dá soco no ar ao superar
Pelé em jogos oficiais (Ricardo Moraes / Reuters)

Li, em grandes portais, textos sobre o grande feito de Neymar, chamando-o de o maior artilheiro de todos os tempos da Seleção Brasileira. Faltou qualificar: EM JOGOS OFICIAIS. 

Há alguns anos, fui à Aceesp para assistir a uma palestra daquele que vou chamar de Anticristo do Jornalismo Esportivo, mas não direi quem é. Ele disse, entre outras bobajadas, que aquele que se orgulhava de ter boa memória perderia a utilidade, já que o Google está aí pra isso.Não podemos perder a capacidade de contextualizar as épocas. 

Nada é tão raso ou tão equivocado, ainda mais numa área de atuação em que a História é tão importante. Não se trata do que, mas de como e por quê. Bom, tudo o que ele, o Anticristo, produziu depois mostrou que minha impressão sobre ele estava certa.

Ah, não tem como aferir com um critério razoável porque não existe um que seja próximo de um consenso. Então, faça-se a distinção, mas jamais deixe de qualificar, pois é impossível comparar épocas diferentes, com competições diferentes e calendários diferentes. .

A História, como ciência, não deve ser vista em ordem decrescente. Não se trata de diminuir o feito de Neymar, que marcou dois, fora os lances em que espalhou o perfume do futebol brasileiro em campo. Isso não tendo jogado ainda nesta temporada, longe da melhor forma. 

Ou então deixaremos a inteligência artificial contar a história


segunda-feira, 4 de setembro de 2023

BRASIL - Antony, Paquetá e a mensagem do meio futebol



Lucas Paquetá não foi convocado para os dois primeiros jogos das Eliminatórias da América do Sul para a Copa do Mundo, contra Bolívia e Peru, segundo Fernando Diniz, por causa das acusações de envolvimento em apostas. Antony não teve o mesmo tratamento porque a CBF e o treinador não tinham acesso a detalhes do processo no qual é acusado de agressão pela ex-namorada Gabriela Cavallin. 

Agora têm, conforme matéria do UOL, assinada pela dupla Beatriz Cesarini e Pedro Lopes.

Se o atacante for mantido na lista para os jogos das Eliminatórias para a Copa do Mundo, que não passam de mera formalidade, a mensagem será muito clara: o envolvimento em apostas, mesmo que não seja em benefício próprio, é mais grave que bater e/ou fazer terrorismo psicológico contra uma mulher grávida, com fortes indícios de que ela perdeu o bebê durante a gestação por causa de tudo o que a mãe passou.

Assim como Paquetá, Antony não foi condenado. Assim como Paquetá, existem indícios muito sérios. Assim como Paquetá, Antony não pode representar o futebol brasileiro enquanto não resolver suas "questões", digamos assim. E por "questões", entendam "crimes dos quais estão sendo acusados". 

No caso do jogador do West Ham, que perdeu uma negociação "só" para o atual campeão da Liga dos Campeões (o clube de Pep Guardiola ofereceu £70 milhões, valor recusado pelos Hammers), que desistiu de contratá-lo assim que a notícia da investigação estourou, sequer há uma denúncia formal. Ainda assim, Paquetá foi tirado da lista. Antony, por sua vez, já responde processo e isso deveria ser o suficiente para que seu nome não constasse na lista de Fernando Diniz. 

Tremenda bola fora do treinador e da CBF. 

domingo, 27 de agosto de 2023

FUTEBOL FEMININO - O nojo, o machismo, a árvore e a camisa preta



*Texto originalmente publicado no Ludopédio

Um show de horrores, tudo o que cercou as declarações do assediador Luís Rubiales, AINDA presidente da RFEF, na manhã de hoje na sede da RFEF, desde as mentiras para ser defender – como diria Renato, “desculpas quase nunca são sinceras” – até o monte de homens cis brancos e ricos aplaudindo. É nojento. Ele deu o migué de que a Jenni Hermoso consentiu, coisa que ela disse que não fez. Vamos imaginar: ele é presidente da Federação; ela é jogadora. Jamais essa relação poderia existir. Publicamente, então, de jeito nenhum.

Casillas, histórico goleiro campeão do mundo e bicampeão europeu como capitão da Espanha, cobrou a renúncia e classificou como vergonhosa a declaração do dirigente; o atacante Borja Iglesias declarou que não vestirá mais a camisa roja enquanto o dirigente não sair, pelas próprias pernas ou não. De Gea foi enfático (“Meus ouvidos sangram“). Enrique Cerezo, presidente do Atlético de Madrid, e Carlo Ancelotti pediram sua destituição imediata. Alexia Putellas, uma das maiores da história e talvez a maior jogadora espanhola de todos os tempos, disse que “acabou“, colocando-se ao lado da vítima.

Todas as 23 jogadoras que sagraram-se campeãs do mundo assinaram um manifesto no qual se negam a voltar a defender a seleção enquanto Rubiales estiver no cargo. Inclusive jogadoras que se recusaram a defender a seleção Espanhola na Copa do Mundo exigiram medidas drásticas. Vejam, abriram mão da chance de entrar para a história porque queriam a queda do técnico Jorge Vilda, um dos que aplaudiam o assediador, em vez de defendê-la. É bom lembrar que Vilda foi flagrado apalpando o seio de um dos membros da Comissão Técnica durante a final da Copa. Luis de La Fuente, treinador da seleção masculina, estava presente e também prestigiou o dirigente.

Dos clubes, vários se posicionaram. O Barcelona foi ameno, classificando como “imprópria a atuação do presidente”. Seu vizinho, Espanyol, e outros, como Real Sociedad, Getafe e Osasuna, exigiram sua destituição. Já o Sevilla se colocou ao lado da atleta. Mas ainda é preciso mais. O Real Madrid, que teria um peso gigantesco, fez ouvidos de mercador e nem tchum, exceto pelo posicionamento de seu treinador. Bom, não dá para esperar muito de quem é incapaz de defender veementemente um de seus principais jogadores, Vini Jr, vítima reiteradamente de racismo. A demissão de Luís Rubiales, que é necessária e imprescindível, seria uma resposta muito mais forte e contundente – e única à altura – ao cenário grotesco que foi visto na Cidade do Futebol, sede da Real Federação Espanhola de Futebol.

É bom lembrar também que um amistoso entre Brasil e Espanha, visando “celebrar a luta antirracista dos dois países” – como se houvesse alguma -, está marcado para o mês de março do ano que vem, com direito a camisa preta e tudo. Seria pedir demais que a CBF, que vai dar de bandeja a camisa mais importante do mundo para promover o país onde um de seus mais importantes jogadores no momento é agredido estando ou não em campo, solicitasse explicações sérias sobre o ocorrido. Ou então irá desrespeitar também um de suas principais causas na atualidade, que é o apoio ao futebol feminino. Se não fizer, e duvido que fará, mostrará que defender causas abraçando árvore ou jogando de camisa preta é fácil. Difícil mesmo é colocar isso em prática.

Pós edit.: entre a produção (27) e a publicação deste texto no Ludopédio.com.br, muita coisa aconteceu, como o pedido de demissão de quase toda a comissão técnica campeã do mundo. "Quase" porque o técnico Jorge Vilda foi o único a permanecer. Ele, que foi boicotado por diversas jogadoras antes da Copa, aplaudiu o pronunciamento de Rubiales e lamentou, posteriormente, mais que o assunto tenha sido o beijo [FORÇADO], que ele classificou como fruto de um "comportamento impróprio", e não a conquista; a RFEF, de onde Rubiales está afastado por 90 dias por imposição da FIFA, subiu o tom e ameaçou Hermoso de processo, além de afirmar que tomaria ações legais necessárias contra quem se negasse a representar o país, pois "jogar pela Seleção Nacional é obrigação de qualquer membro da federação chamado a fazê-lo"; os membros da comissão técnica que se demitiram informaram que foram coagidos pela RFEF a participar da assembleia na qual Rubiales declarou que ficaria. Inclusive, segundo os 11 demissionários, as mulheres componentes do staff teriam sido obrigadas a se sentarem na primeira fila, em sinal de apoio ao dirigente; o simples afastamento do presidente de suas funções ou de qualquer outra atividade esportiva não terá efeito algum se, além da proibição de manter contato com Hermoso ou qualquer pessoa ligada à atleta, a proibição não se estender a qualquer membro da RFEF, ou então toda ação promovida pela própria Real Federação Espanhola de Futebol contra as jogadoras e demais pessoas que, estando ao alcance de sanções da entidade, a apoiarem, levantará suspeitas de que o afastamento é só protocolar.

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

PORTUGAL - Foi bonito e é só o começo



Acordar pouco antes das 4h, a tempo de apanhar a execução de "A Portuguesa", para ver Portugal x Estados Unidos valeu a pena. Valeu cada segundo, cada pormenor de Jéssica Silva, cada defesa de Inês Pereira, cada balé de Kika Nazareth, esse monumento de jogadora, cada movimento para abrir caminhos de Andreia Norton, cada "cá mando eu" da dona do meio-campo, a Dolores Silva. Valeu pelos pulmões petrificados quando os pés de Ana Capeta nos fizeram sonhar, mas o poste resolveu contrariar. Teria valido a pena também se tivéssemos tomado a surra que o mundo imaginava quando os grupos foram sorteados e calhou a Portugal as campeãs e as vice-campeãs em título, pois é parte do processo.

A história está escrita e o futuro das Navegadoras é risonho, mas para isso será preciso mais do que viver do talento de jogadoras maravilhosas, intensas, talhadas à Portugal. Por elas, por quem virá depois delas e terá nelas as referências que só poderiam ter no futebol masculino. E pelo legado daquelas que lutaram quando nem havia uma competição regular entre mulheres no país.

Que invistam na formação e no profissionalismo do futebol feminino. Que clubes como o FC Porto tenham equipas de mulheres desde a formação, mesmo que seja na marra. 

Como foi bom sonhar. A viagem não acabou, está apenas começando.

Obrigado, Portugal!

quinta-feira, 27 de julho de 2023

PORTUGAL - Heroínas do mar


A história está a ser feita. As Navegadoras venceram pela primeira vez na história da Copa do Mundo de futebol feminino. E quis o destino que fosse na mesma Hamilton, onde superou Camarões para ter o direito de viver o sonho. 
É a vitória de quem sonha, de quem acredita, de quem trabalha, tem apoio e uma estrutura para transformar sonhos em feitos. 

Tudo bem, a adversária era mansinha e mostrou as garras no início do jogo para assustar, mas o fato é que, exceto pelo final da primeira parte, quando o Vietnã conseguiu sair das cordas e causar algum embaraço, a bola rolou à portuguesa, com todas as virtudes e os defeitos do jeito português de ser.

O talento da craque Kika Nazareth - que mulher maravilhosa!; a classe e a fineza de Jéssica Silva, a quem o futebol deve ao menos um golo nesta Copa; as virtudes de Telma Encarnação, que mostrou na estreia que era possível olhar nos olhos das maiores, e a quem coube a honra de marcar o primeiro. E Lúcia Alves. E Andreia Jacinto. E Joana Marchão. E toda a malta.

O 2-0, tímido para o tanto que foi criado, poderia ter sido 5 ou 6, não fosse a precipitação no momento de prosseguir com a jogada. Faz parte do processo. O tempo trará a maturidade que permite tomar as melhores decisões. 

Temos pela frente os Estados Unidos, que é o Brasil do futebol feminino, e provavelmente só a vitória contra a camisa mais pesada do mundo servirá para seguir. Temos a certeza de que a viagem está a ser bonita, mesmo não sabendo onde vai dar. Para além da dor já passamos e o abismo está logo à frente, mas o espelho do céu também.

Vamos, Portugal! Sobre a terra, sobre o mar, sobre a relva. É sobre sonhar. É sobre ser português.

domingo, 23 de julho de 2023

PORTUGAL - A História está escrita por elas

Portugal fez sua estreia em mundiais. Uma história que começou há quase meio século, foi interrompida - porque, "afinal, jogar à bola não é para raparigas - e agora é levada a sério. Pode mais.

Como mostrou poder frente às vice-campeãs do mundo. As comandadas de Francisco Neto não abdicaram do jogar à portuguesa, buscando a construção de jogo desde as centrais. Pensando neste jogo, pode ter sido um erro, pois Portugal nunca conseguiu superar a frescura e a superioridade física das neerlandesas, sempre a recuperar a posse de bola ainda na sua metade ofensiva. Pensando em longo prazo, mais do que construir jogadas, as portuguesas estavam a construir uma identidade. Saber o caminho é a melhor forma quando se quer chegar a algum lugar.

Talvez o maior erro do selecionador português tenha sido sobrecarregar os pés mais finos entre as que não vestiram laranja, os de Andreia Norton, o que acabou por fazer que a espetacular Jéssica Silva tivesse que se virar sozinha durante boa parte do tempo. Jogar sem Kika Nazareth ou Telma Encarnação desde o início também não se mostrou uma decisão muito feliz, pois não havia quem incomodasse as centrais contrárias, que sempre jogaram compactadas e em vantagem numérica onde quer que a bola estivesse.

Claro que, além disso, o nervosismo das debutantes deixou tudo mais difícil.

Na segunda parte, mais à vontade ante a grandeza do palco, já com as neerlandesas a marcar mais perto do meio-campo, Portugal pode mostrar um pouco do que é capaz. Trocas de passes, velocidade, Jéssica Silva. O empate não era mau, embora a turma que mais fez por merecer a vitória tenha sido quem realmente venceu.

Para quinta, no mesmo horário, haverá mais. E será mais um passo em busca do crescimento. O resultado, para já, é o que menos importa. Que desfrutem o caminho.

Na imagem, a emoção de Jéssica Silva mostra o que representa estar no Mundial para quem, há meio século, nem poderia jogar.

segunda-feira, 15 de maio de 2023

PORTUGUESA - Sonhos e pesadelos

Uma das diversões que o ócio proporciona em grupos de amigos dispostos a falar de futebol é criar seleções disto e daquilo. O onze histórico, o time com os melhores que fulano viu, o top cinco. Há versões para todos os gostos. 

Ou desgostos.

Neste caso, podemos citar os piores jogadores por setor, por posição ou mesmo o onze mais capaz de acarretar os piores transtornos psicológicos que o futebol pode causar. 

No ano do centenário da Portuguesa, fui um dos jornalistas escalados pela Federação Paulista de Futebol para escolher a “Melhor Portuguesa de Todos os Tempos” e fui de Felix; Djalma Santos, Brandãozinho, Marinho Peres e Zé Roberto; Capitão, Enéas, Dener e Pinga; Julinho e Simão. Com Otto Glória a comandar este timaço.

Como sou torcedor da Lusa desde 1985  - esse negócio de ser torcedor desde que nasceu é sonho de todo pai/mãe fã de futebol que se preze, mas não é bem assim não, ainda mais quando o time não favorece-, a campanha do último vice-campeonato paulista daquele ano é o ponto inicial do período no qual eu pinço os nomes para preencher o time dos meus sonhos.

E o dos meus pesadelos também.

Desde 2002, quando nosso pescoço foi atingido pela primeira vez pela lâmina que degola equipes ruins e/ou desafortunadas e passamos a colecionar mais rebaixamentos do que a Gretchen tem de casamentos, escolher um jogador para entrar no rol dos melhores que vestiram a camisa da Lusa em campeonatos de Primeira Divisão é uma missão ingrata, ainda mais para quem viu Serginho, Zé Maria, Zé Roberto, Luís Pereira, Emerson, Cesar, Jorginho, Alex Alves (os dois), Dener, Toninho, Edu, Roberto Dinamite, Bentinho, Paulinho McLaren, Evair, Leandro, Rodrigo e tantos outros. Gilberto? Moisés? Moisés Moura? Bruno Mineiro? Dida? Valdomiro? Diogo? Não consigo pensar num onze com facilidade para isso.

O time da Barcelusa era legal? Era um timaço, mas um timaço que brilhou na Segunda Divisão, e eu entendo quem busque nele seus heróis, como Ananias e Edno, mas para quem passou a maior parte da sua vida de torcedor disputando a elite, e com boas possibilidades de títulos em alguns destes anos, eleger quem brilhou na Série B é um troço triste demais. A2 e Copa Paulista, então, esquece.

Quando, daqui a alguns meses, eu resolver atualizar minhas escolhas dentro destes grupos de amigos dispostos a falar de futebol e criar seleções disto e daquilo, suspeito que a Portuguesa versão 2023 estará representada, e não será só por um ou dois.

E minha psicóloga adiará a minha alta por tempo indeterminado.

terça-feira, 4 de abril de 2023

PALMEIRAS - O menino que perdeu o brinquedo

Marcelo Zambrana/AGIF - Estadão Conteúdo

*Texto originalmente publicado no Ludopédio 

“Às vezes me pergunto: por que colocaram tanta mídia em mim? Eu não pedi isso. Tem situações que passam dos limites. ‘Ah, ele é o novo Pelé’. Cara, ninguém vai ser o Pelé, ele é o rei do futebol. Mas, agora, não tem o que fazer, não dá para pedir que as pessoas não falem da minha vida. Sempre disse que gostaria de ter todos os brasileiros perto de mim, mas entendo cada vez mais que isso não é possível e sempre existirão pessoas para me atacar".

Esta é uma das falas do palmeirense Endrick à revista GQ de abril, que tem o menino na capa, segundo a qual ele é o jogador mais valioso do futebol brasileiro, embora o site especializado na avaliação de valores de mercado Transfermarkt o coloque em segundo, ao lado de Pedro, do Flamengo (avaliados em €20 milhões), atrás do também rubro-negro Gabigol (22 M).


Essa pressão sobre ele, o precoce idolatrado antes mesmo de ter se formado ídolo, desumaniza e é desumana, é desleal. Ele é um talento, e talentos se impõem, mas está em formação. O ainda menino, que paga pelo preço de ser diferente dos outros e que já foi negociado com o Real Madrid, tinha que ser incorporado aos poucos no time de cima. Um treino, depois uma convocação, uma vez no banco. Sentir o clima, jogar também pelo Sub-20 para seguir o trabalho de potencializar o enorme talento que tem.

Lapidar, desenvolver o potencial, errar, aprender. Mesmo já negociado, e este foi o preço que o talento precoce e a exposição resultante e desmedida cobraram, não poderia ser jogado aos leões como foi. "Vai lá e resolve, menino-gênio!", numa mistura feita com a cobrança feita por quem canta-e-vibra-pelo-alviverde-inteiro e com quem menospreza e faz troça, torcendo pelo fracasso porque gente ruim é assim mesmo. Não é assim que se faz.

Ao saber brincar de jogar à bola melhor que os outros, Endrick perdeu o brinquedo e passou a ter a obrigação de, jogo sim, jogo também, resolver o que adultos formados não resolvem.

Segundo De Rose Jr (1997), praticantes de esportes de competição estão expostos a vários tipos de pressão, internas ou externas. As pressões que vêm de fora estão relacionadas a como seus treinadores, torcedores e companheiros analisam seu desempenho. Internamente, são sobre seus objetivos pessoais, expectativas e de como vivenciam vitórias e derrotas.

Muita gente se esquece, mas ele é gente, não é produto ou máquina, ou uma fruta colhida verde do pé, mas que tem que dar suco do mesmo jeito ou então é para deitar fora. Milton Nascimento e Fernando Brant já nos ensinaram em Bola de Meia, Bola de Gude que, quando o homem fraqueja, é o menino que o irá socorrer. Mas na máquina de moer gente chamada de futebol profissional, o menino não tem vez, a cobrança por resultado não permite lapidar, aprimorar, maturar, desenvolver a tomada de decisão, que é o talento posto em prática da melhor forma. E não se trata de romantismo, é amadurecimento. É etapa.

Explicou Carravetta (2001) que, em jovens atletas, o desenvolvimento de suas capacidades se dá em quatro pilares: físico, tático, técnico e psicológico, que estão ligados às condições inatas ao indivíduo e é aperfeiçoado nas atividades que ele realiza no meio social e cultural, o que exige do atleta que suas funções sejam altamente desenvolvidas, bem como suas habilidades e estado psíquico para que se mantenha no processo de preparação para a competição desportiva. Neste sentido, diz Becker Jr (2007) que quando o início competitivo é precoce e os pilares não estão desenvolvidos adequadamente para a faixa etária da competição, pode haver um desgaste chamado Síndrome da Saturação Desportiva, que é explicada neste artigo publicado pela Universidade do Futebol.

É no período da adolescência, porém, e é aqui em que o Endrick se encontra com seus 16 anos (fará 17 somente no dia 21 de julho), que ocorrem alterações em nível físico, mental e social, em um processo de aquisição e desenvolvimento de competências que o capacitarão para assumir deveres e papéis sociais de um adulto (SAMULSKI, 2002).

Samulski e Chagas (1992) falaram que adolescentes, pela pouca experiência competitiva que têm, tendem a apresentar dificuldades para controlarem suas emoções e suas reações. Da mesma forma, podem ter mais problemas com os efeitos negativos causados pelo estresse que faz parte do processo esportivo e de competição.

A tomada de decisão não é algo que nasce pronta ou vem com o talento. É trabalhada. É memória que se cultiva com erros e acertos. E repetição. E treino. E tempo. No jogo físico, direto, no futebol profissional que condena o que é inútil, e é inútil o que não é rentável, como disse Eduardo Galeano no estupendo Futebol Ao Sol E À Sombra, Endrick perde porque, por mais talentoso que seja, ainda é um menino em desenvolvimento.

E perde porque ainda não tem os atalhos e seus movimentos automatizados. É robótico? É, mas é assim que o futebol atual molda. Livros como "A Bola Não Entra Por Acaso", "Guardiola Confidencial" e "Guardiola - A Evolução" explicam. É científico. Não é achismo. E não se refuta ciência com opinião.

O pior de tudo isso é que o Palmeiras não precisava queimar etapas, mas queimou. E corremos o risco de rifar a saúde mental de um menino porque ele é talentoso e porque o futebol - e tudo - transforma homens e meninos em mera mercadoria.

Referências:
GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. Editora L&PM, Porto Alegre, 2014.

DE ROSE JR, D. Sintomas de “stress” no esporte infanto juvenil. Revista Treinamento Desportivo. Curitiba, v.2, n.3, p.12-20, 1997.

CARRAVETA, E. O jogador de futebol: técnicas, treinamento e rendimento. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2001.

BECKER JR, B. Treinamento psicológico para jovens desportistas.In: GAERTNER, G. Psicologia e ciências do esporte. p.143-164, Curitiba:Juruá, 2007.

FRANCO, Gisela Sartori. Psicologia no Esporte e na Atividade Física. Editora Manole, 2000.

SAMULSKI, D. M. Psicologia do Esporte. 2° ed. São Paulo: Editora Manole, 2002.

SAMULSKI, D. M; CHAGAS, M.H. Ánalise do stresse psíquico na competição em jogadores do futebol de campo das categorias infantil e juvenil (15-18 anos). Revista Brasileira de Ciência e movimento, 1992.

SORIAN, Ferran. A bola não entra por acaso: o que o futebol tem a ensinar à gestão. Lisboa: Gestão Plus, 2010.

PERARNAU, Martí. Guardiola confidencial. Campinas: Editora Grande Área, 2015.

PERARNAU, Martí. Pep Guardiola: a evolução. Campinas: Editora Grande Área, 2017.