*por Fabio Venturini
Sempre defendi que essa ideia de que o futebol é desimportante,
por isso um mundo separado, é conversa para boi dormir. O futebol é dialético
com todos os demais momentos e lugares de nossas vidas. Ele é reflexo do que
pensamos assim como molda o nosso pensamento, seja na condição de jogador,
torcedor, peladeiro, árbitro, juiz do STJD etc.
Esta semana particularmente chamou-me a atenção três momentos. Relendo Paulo Freire
me aparece um trecho memorável de Pedagogia do Oprimido:
“Não haveria oprimidos se não houvesse uma relação de violência
que os conforma como violentados, numa situação objetiva de opressão. Inauguram
a violência os que oprimem, os que exploram, os que não se reconhecem nos
outros; não os oprimidos, os explorados, os que não são reconhecidos pelos que
oprimem como outro.”
Freire descreve longamente uma dinâmica em que o opressor
responsabiliza o oprimido pelas violências e injustiças a que são submetidos.
Nos intervalos da leitura, tive a (in) felicidade de ver um jogo daqueles
eletrizantes do campeonato inglês, Manchester City x Chelsea.
No desenrolar da partida, o zagueiro Zabaleta, do City, fez uma
falta dura em Diego Costa. Não satisfeito, foi para cima do atacante do Chelsea
e iniciou uma ríspida discussão, com troca de afagos que não chegaram a ser
agressão. O árbitro expulsou Zabaleta, apenas, pela falta e por ter gerado a
confusão.
Qual é a dúvida de que no Brasil ambos seriam expulsos?
Os homens de preto daqui sempre tomam a decisão que os
comprometem menos. O maior sintoma é quando Sandro Meira Rici vai à Copa do
Mundo e apita como se estivesse na Bundesliga, não nas “arenas” do Brasil.
Toda vez que um comentarista de arbitragem quer justificar os
erros absurdos, daqueles que acomodam opinião pública, times em questão e
“orientações” da comissão de arbitragem, falam em “imprudência”.
Se um jogador colocou a mão no rosto do adversário que se atirou
no chão e foi expulso, sua atitude foi imprudente. Se deu um carrinho, o
atacante se atira no chão e o juiz marca equivocadamente o pênalti, a
responsabilidade é do zagueiro e sua imprudência, sua inconsequência.
Assim se difundem padrões de opressão pelas telinhas todas
quartas à noite e nas tardes de domingo.
O que faz então pessoas como Sandro Meira Rici terem uma postura
em torneios internacionais e outra nos campeonatos locais?
Na Inglaterra, na Alemanha e, em menor medida, na Copa do Mundo,
o objetivo do árbitro é cumprir a regra. No Brasil, é “controlar o jogo”, como
expõem sem o menor constrangimento os comentaristas de arbitragem: Arnaldo
Cézar Coelho, Leonardo Gaciba, José Roberto Wright, Paulo César de Oliveira e
até Sálvio Espínola, que está na ESPN, uma emissora cujos comentaristas tanto
exaltam o futebol europeu, mas, quando se tratam de torneios brasileiros,
acomodam-se na ideia de “imprudência” do injustiçado.
Essa mentalidade faz com que uma falta seja digna de expulsão
aos 38 minutos do segundo tempo, quando o time da casa já tem um a mais e está
ganhando o jogo, mas lances idênticos não sejam punidos com cartão amarelo no
primeiro tempo ou sequer se marque falta. O mesmo critério que faz uma bola
tocada na mão vire pênalti contra o visitante, mas uma mão intencional na bola
no meio de campo pelo atacante adversário não lhe renda o segundo amarelo.
Imagine o seguinte lance: um atacante que desde o começo do jogo
está procurando contato com os zagueiros e se atirando dentro da área corre na
direção do gol adversário com a bola dominada. Um zagueiro corre e o alcança,
mas para dar tempo de impedir o gol estica a perna e se joga à frente da
trajetória da bola. O atacante, atrapalhado, erra o chute e na sequência dobra
os joelhos. Na sequência ambos se embolam. O atacante, tocado na perna
esquerda, dá três rolamentos gritando como se fosse amputado a sangue frio com
a mão no joelho direito.
O lance é dentro da grande área. É falta?
A regra do jogo manda avaliar se a bola estava em disputa, mas
as orientações de arbitragem no Brasil mandam jogar a partida.
As chances de o juiz ser ludibriado e marcar um pênalti são
grandes em qualquer lugar do mundo, mesmo na Inglaterra e na Alemanha, onde
joga a maioria dos jogadores dos quatro semifinalistas da última Copa do Mundo.
Nesses locais há também uma boa possibilidade de o árbitro, estando próximo da
jogada, aproximadamente seis ou sete metros e com visão frontal do lance,
perceber a acrobacia do atacante e não botar a bola na marca penal.
No Brasil essas duas possibilidades estão condicionadas aos
mesmos critérios que fazem um time ter 60% mais pênaltis em seu estádio do que
qualquer outro adversário, os mesmos que fazem uma agremiação perder pontos e
ser rebaixada pelos mesmos motivos que outras são absolvidas.
Em poucas horas o jogador expulso e o time rebaixado se tornam
“imprudentes”, responsáveis pela violência a que foram submetidos. O jogador
vítima do racismo se torna culpado por ter feito uma denúncia e as vaias, tão
ou mais racistas do que gritos de “macaco”, se tornam sua obra. Críticos de
pastores homofóbicos chegam ao delírio chamando o torcedor adversário de viado.
Inconformados com a corrupção “de tudo que está aí” buscam releituras das
regras para justificar uma vitória conduzida desde o primeiro minuto pela
arbitragem.
E assim, nos dias em que não há futebol, a criança de um ano de
idade bombardeada com lacrimogêneo é a culpada por não respirar oxigênio, pois
estava onde não deveria. O pobre é culpado por não ter nascido em condições de
ficar rico. O camelô que leva um tiro na boca é tão responsável pela sua morte
quanto o homicida que puxou o gatilho.
Esporte é para dar sanidade a corpo e mente. Na TV tem feito
justamente o contrário.
*Fabio Venturini é jornalista