sexta-feira, 28 de abril de 2017

Sobre ofensa, oportunismo e Jornalismo



"Sou homem pra c...!"

"Suei muito para chegar aqui!"

"Eu estudo. Não cheguei por acaso!"

O que poderia ser uma autoanálise e mais pareceria argumento de quem está se preparando para uma entrevista de emprego, é a prova de que Eduardo Baptista está pressionado. Alguém à vontade, confortável, não teria a reação que ele teve após a épica vitória sobre o Peñarol, no Uruguai, por 3 a 2 de virada.

Fazia mais de 40 anos que o Palmeiras não vencia em terras cisplatinas. É provável, caro leitor, que você ainda não tenha sido dado à luz quando o Verdão venceu no Uruguai pela última vez. Já seria assunto suficiente para o pós jogo.

Seria.

Não foi porque os aurinegros resolveram armar uma tocaia aos palmeirenses ainda no gramado do Campeón del Siglo, porque Felipe Melo foi perseguido e reagiu, porque os 19 seguranças palmeirenses evitaram uma tragédia. E porque Eduardo Baptista resolveu falar.

Logo no início da coletiva de pós jogo, começou a falar com firmeza, que deu lugar à indignação e meia dúzia de socos na mesa enquanto o volume da voz ia aumentando, até que exagerou no tom. Tudo que é exagero sobra, e, neste caso, a sobra é o exagero no argumento que lhe tira a razão.

Sem citar o nome, cobrou do jornalista Juca Kfouri que revelasse a fonte que lhe disse que Baptista tinha sido "convencido" por Alexandre Matos a escalar Róger Guedes contra a Ponte Preta. "Não sou maleável! Exijo respeito! Sou homem pra caralho!" 

A torcida, é claro, adorou. Este é o papel dela. E Eduardo Baptista aproveitou para sair, mesmo momentaneamente, de questionado para assumir uma condição de herói, de quem suportou a pressão com estoicismo e que se insurgiu contra as injustiças causadas por um jornalista malvado que apenas fez seu papel.

Quando o sujeito precisa ficar se explicando muito, é porque algo está errado. Ou, como diz um antigo provérbio português, "Quem se escusa, se acusa". Gosto muito dos provérbios portugueses.


Já disse Willian Randolph Hearst (1863-1951), jornalista americano que serviu de inspiração para o personagem protagonista do filme Cidadão Kane: "Jornalismo é publicar aquilo que alguém quer que não se publique. Todo o resto é publicidade". Juca tinha a informação, passada por uma fonte de sua confiança. Se ele a julga relevante o suficiente para ser notícia e tem confiança em quem a passou, vai segurar por quê? Isso é jornalismo! Todos, principalmente jornalistas, deveriam saber disso.

Como se não bastasse, Baptista exigiu que Juca, de quem - reitero - não falou o nome, falasse quem é sua fonte. Não, professor, o jornalista não revela sua fonte e isso não só é sagrado na profissão como é previsto em lei, e esta é a matéria-prima do jornalismo. Assistam ao filme O Informante e entendam, caso discordem. A reação do treinador é compreensível, mas colocar em dúvida o procedimento do jornalista não tem o menor cabimento.

É preciso entender o contexto. Baptista explodiu daquele jeito porque está pressionado. Está pressionado porque seu trabalho é pífio à frente do elenco mais caro da América do Sul. É pífio porque não consegue dar padrão ao time e porque, a cada jogo, o nome de Cuca ecoa na sua. E também porque o Palmeiras ganhou um jogo complicado, mas que só foi assim por causa do desempenho horroroso do primeiro tempo, quando o sistema escolhido por ele não deu certo. Seu mérito foi entender a bobagem que fez e consertar. O lado bom foi admitir o tamanho do erro e não se debruçar em números para justificar uma escolha equivocada.

Foi oportunista.

Eduardo Baptista tem todo o direito de se sentir ofendido e é perfeitamente compreensível que assim seja, mas existe a Justiça para pedir a reparação, em vez de ser numa entrevista coletiva, onde não há replica, onde os comportados repórteres perguntam, mas não questionam, onde Juca Kfouri não estava para responder. Insisto: Juca confia na fonte e por isso deu a informação. É mentira? Que seja interpelado judicialmente e prove.

Só Eduardo sabe onde e o quanto incomoda ter sua competência posta à prova a cada rodada depois de ter se preparado, ter estudado tanto, como ele mesmo disse, como se isso desse a garantia de que o trabalho é bem feito. Já disse isso antes nesta mesma tribuna sobre ele mesmo: defendo que a diretoria deva dar condição e respaldo para que ele trabalhe e possa, com tempo e condição para isso, ter a chance de apresentar seu trabalho da melhor forma, mas não é dando esse tipo de chilique que ele irá conseguir o respeito que julga merecer.

Mesmo porque sua aura de herói, como todas as verdades do futebol, irá durar somente até a próxima partida ruim.

quinta-feira, 27 de abril de 2017

A pior face do ser humano

DESUMANO Vale tudo no futebol? (Getty Images)
“Ó vascaíno, por que estás tão triste? Mas o que foi que aconteceu? Foi o Dener que bateu na árvore, quebrou o pescoço e depois morreu” (elementos vestidos com a camisa do Flamengo cantaram para provocar a torcida do Vasco em virtude da morte do meia Dener, em 1994)

“Foi no Jamor  que o lagarto ardeu” (ultras imbecis da No Name Boys, torcida extremista e violenta do Benfica, entoam este grito sempre que Benfica e Sporting se enfrentam (em qualquer modalidade), em alusão à morte do torcedor Rui Mendes, atingido por um sinalizador (chamado de “very light“, em Portugal) na final da Taça de Portugal de 1996, no estádio do Vale do Jamor, em Lisboa).

“Ah, quem me dera que o avião da Chapecoense fosse do Benfica” (vagabundos da Super Dragões, uniformizada do Porto, durante uma partida de handebol entre Porto e Benfica, em 2017)

“Não é mole não, você vai cair igual o Fernandão” (grito ouvido durante um Corinthians x Internacional de 2016 em referência ao acidente de helicóptero que vitimou o atacante Fernandão dois anos antes)

“Ão ão ão, abastece o avião” (torcida organizada do Criciúma, durante o jogo com a Chapecoense, pelo Campeonato Catarinense de 2017).

IMBECIS "Torcida" do Tigre que cantou sobre o avião
 da Chapecoense (Reprodução/Twitter)
O psicólogo e sociólogo francês Gustave Le Bon publicou em 1895 a tese da Psicologia das Multidões, segundo qual o contato com as pessoas traz influências pelo contágio, em que há influência no comportamento individual a partir de ações tomadas no grupo. As opiniões e crenças das multidões são propagadas por contágio e não pela razão. Este princípio é citado n’O Livro dos Insultos, de HL Mencken, no capítulo “A Turba”, que diz que, quando ombreados, homens descem um ou dois degraus intelectualmente dizendo e têm as mesmas reações mentais e intelectuais de pessoas inferiores nestes sentidos.
Menckens, brilhante jornalista americano do início do século XX, discorda. De acordo com ele, trata-se de uma rara oportunidade de exprimir sua verdadeira face em segurança. Isso foi escrito em 1918. Tendo a concordar com ele, Mencken. Hoje, as oportunidades de aglomeração de palermas dão-se todos os dias e de diversas formas. As mídias sociais são um exemplo disso, mas vamos nos ater às torcidas organizadas.

Comecei este texto citando cinco momentos infelizes, para dizer o mínimo, que ocorreram dentro de campos de futebol do Brasil e de praças esportivas portuguesas. Elas são mostras incontestes de como Mencken tinha razão ao associar o comportamento de massas com a verdadeira cara desta escumalha. 

Mostram o pior do ser humano, sua repugnância, ainda mais no ambiente do estádio de futebol, esse território sem lei onde os imbecis creem tudo poder.

Referência nacional nos estudos da violência no futebol, o sociólogo Maurício Murad, em entrevista ao site Goal Brasil, explica a sensação de impunidade e pleno poder que existe nas praças esportivas, e sua opinião vai ao encontro da teoria de Le Bon. “O futebol é um evento cultural muito forte das multidões e da paixão humana. A paixão e a multidão tudo acentuam. Então, a multidão tocada pela paixão é muito propícia a exageros, transgressões e ultrapassagem dos limites razoáveis da vida, da convivência humana. São minorias estúpidas, com um grau de irracionalidade, violência e ódio muito intensos e que pensam que o universo do futebol permite tudo; que em um estádio ou no meio da multidão você pode tudo que você não pode na, digamos, vida real”.

É um quadro desolador. Em 2014, no Derby Della Moli, torcedores da Juventus ironizaram a Tragédia de Superga (1949), quando 42 pessoas morreram, entre elas 18 jogadores do supertime do Torino (base da Squadra Azzurra que disputaria a Copa de 1950), quando o avião que trazia o Toro bateu na torre da catedral de Superga. Não é raro os rivais do Manchester United fazerem troça com o acidente que matou 23 pessoas em Munique, entre elas, integrantes da delegação do United.

Mas o que os atinge? A execração moral não os incomoda, uma vez que, entre os iguais, ganham projeção e respeito dentro da organização que se classifica como torcida organizada. Na verdade, são gangues que se aproveitam da conivência do poder público e dos próprios clubes para, como disse Murad, fazer tudo o que não poderia em outros lugares e ambientes fora do futebol. A ascensão da Barra Brava mais temida da Argentina deu-se dentro deste panorama, como conta La Doce – a Explosiva História da Torcida Organizada MaisTemida do Mundo, o excelente e indispensável livro do jornalista argentino Gustavo Grabia sobre a gangue organizada do Boca Juniors.


Esta é a pior face do ser humano. Fazer troça com tragédias desta natureza não é aceitável, não há exceção, seja pela morte de um ídolo, um adepto ou uma equipe inteira. Não se trata de um rebaixamento ou uma derrota vexatória. Há limites sim para a zoação, e o respeito da vida humana é um deles, se não o principal. A falta de discernimento e empatia é o primeiro passo para a barbárie e, daí, para a prova inequívoca de que a humanidade é uma experiência que não deu certo. 

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Rodrigo Caio e o relativismo moral

FUI EU, PROFESSOR Rodrigo Caio pisa no goleiro Renan ao tentar proteger a bola em
 jogada com o atacante Jô, do Corinthians. Foto: Daniel Augusto Jr/Ag. Corinthians
“De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto”. O trecho do discurso proferido por Rui Barbosa no Senado Federal em 1914, portanto há mais de cem anos, é citado no livro “Ética e Vergonha naCara”, de Mario Sergio Cortella e Clovis de Barros Filho.

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Cortella fala do “se é bom para mim, tudo bem”, que classifica como ética de conveniência ou relativismo moral. Ele argumenta usando o caso do corredor espanhol Iván Fernández Anaya, que não quis vencer uma corrida de crosscountry em 2012 ao perceber que o queniano Abel Mutay, que venceria, parara antes por se confundir com a sinalização e achar que já tinha vencido a prova. “O que teria dito minha mãe?”, pergunta Anaya ao repórter que questionou a atitude. Para Cortella, a mãe é a última pessoa a quem se quer envergonhar.

No dia seguinte após o Corinthians vencer o São Paulo por 2 a 0 no Morumbi, o zagueiro Maicon disse que preferia ver a mãe do adversário chorando à sua . Talvez o xerifão com cara de mau e futebol igualmente assustador não tenha parado para pensar no que sua mãe pensaria se o filho visse algo injusto e calasse por e para ser beneficiado.

A atitude de Rodrigo Caio ao confessar ter pisado no goleiro de seu time ao tentar proteger a bola da investida do atacante Jô, evitando assim um injusto cartão amarelo ao adversário (que o suspenderia do jogo da volta, no qual a sua equipe precisa vencer por boa margem de gols para seguir adiante), nem deveria levantar tanta polêmica. E como toda polêmica em tempos de redes sociais para seu fomento, a discussão é a mais rasteira possível.

O tema deveria ser consenso, mas apenas é debatido porque nunca se pensou tanto no próprio umbigo. Ou melhor, porque perdeu-se a vergonha faz tempo, mas agora resolveram escancarar, como se fosse feio ser honesto, coisa de otário mesmo. Como cantou Gardel em Cambalache (e Raul Seixas traduziu dois anos antes de partir), “quem não rouba é um imbecil”.

Torcedores revoltados com a atitude do jogador condenam sua honestidade a ponto de atribuir a ela o novo insucesso de sua equipe, mesmo que esta esteja se arrastando em campo, nos chamados jogos grandes. Como se a virtude fosse errada, como se fosse justificável ganhar a todo custo.

Não é.

A competitividade no futebol não pode ser desculpa para que seja instituído uma espécie de território sem lei, onde tudo é permitido, desde uma simulação para obtenção de vantagem imerecida à ofensa racial, buscando o destempero do contrário. O futebol nada mais é que a metáfora da vida e isso explica essa elasticidade moral vista quando a bola rola, quando Fred cava um pênalti na estreia da Copa, quando Rivaldo simula uma bolada no rosto, quando Henry leva a mão à bola para classificar a França. Aplaude-se o esperto pelo resultado obtido. Resultado: é o que diferencia também o esperto do trouxa.

Mas não se enganem. O mesmo relativismo moral cunhado no diálogo entre Cortella e Barros Filho explica os elogios dos jogadores corintianos, que não tomaram atitude semelhante quando tiveram oportunidade. Sem medo de errar, fosse um companheiro de time deles a fazer o que fez Rodrigo Caio, o discurso seria outro.

O excelente Moacyr Franco, na Praça da Alegria, criou o personagem Mendigo, que andava com um jornal amassado sob o braço e repetia o bordão “e quanto é que eu levonisso?” quando reclamava da vida. A resposta a esta pergunta tem determinado a distância entre o esfregar das mãos e a indignação.


O problema é cultural, é de berço, é de (falta de) retidão de caráter. O cidadão que, ao se vestir de torcedor, aceita qualquer cambalacho que favoreça seu time, despe-se da moral. Mas ao contrário do Mendigo de Moacyr Franco, sua mendicância é vil, é desprezível. Ele mendiga por favores, por benesses, mesmo que seja à margem da lei e em todos os níveis, desde o cafezinho para o guarda à propina do fiscal.

quarta-feira, 19 de abril de 2017

O gênio que o mundo esqueceu


Naquele atípico 13 de novembro de 1991, primavera paulistana, fazia frio. O placar ainda manual de um mal iluminado Canindé apontava um insosso empate sem gols entre Portuguesa e Internacional de Limeira, pela segunda rodada da segunda fase do Campeonato Paulista de 1991, quando, já perto do final do jogo, o time do interior teve um escanteio pela direita, no lado do gol dos vestiários do Dr. Oswaldo Teixeira Duarte. O tiro de canto, mal batido, foi interceptado já no primeiro pau pelo capitão do time, o zagueiro Wladimir. Nilson, o centroavante, ajeitou a bola à altura do grande círculo central para Dener, que vinha em velocidade.

Como um bólido, partiu com a bola dominada e foi superando os adversários, um por um: primeiro Ivan, driblado na passada; depois, um drible da vaca em cima do zagueiro Lica. Denis, lateral-esquerdo, veio babando para aplicar uma tesoura, mas o arisco camisa 10 luso nem tomou conhecimento, para, da marca do pênalti, apenas tirar, com um toque sutil do lado direito, o goleiro, que tentava em vão fechar o ângulo.

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Na mesma noite, todos os telejornais (em 1991 a internet para uso doméstico nem existia no Brasil) davam destaque ao gol de placa marcado pelo menino que, menos de um ano antes, encantara (vestindo a mesma camisa 8 que foi imortalizada por Enéas) o país na histórica conquista da Taça São Paulo de Futebol Júnior.


Dener era assim: reinventava a lógica em jogos em que parecia que não aconteceria mais nada, fadados ao esquecimento, como na antológica arrancada que abre este texto. Ele foi um dos últimos gênios do futebol brasileiro. “Meia à moda antiga, criava chances de gol a partir do nada”, constatou o guia do Campeonato Brasileiro de 1993, da revista Placar. “O melhor do mundo. Morreu antes do reconhecimento”, disse certa vez Edinho, ex-goleiro do Santos e um dos grandes amigos do genial jogador, com a autoridade de quem é filho do Rei Pelé. Dos inúmeros sucessores de seu pai, Dener foi o que mais mereceu a comparação sem que soasse como heresia. Como se não bastasse, Pepe, que jogou com Pelé na Seleção Brasileira e no Santos e foi técnico do craque luso no jogo em que o Reizinho do Canindé destruiu o Peixe em 45 minutos de pura classe e raiva, decretou em entrevista ao site Globoesporte.com quando o desaparecimento do craque completou das décadas: “Foi um dos cinco melhores atacantes que eu vi, e olha que eu vi Pelé, Eusébio, Puskas… Dener está nessa turma aí”.

Onde chegaria? Ninguém sabe, a não ser Deus. À espanhola Líbero, há quase dois anos, falei de Dener na condição de então assessor de imprensa da Portuguesa e torcedor que viu de perto todos os passos do gênio que foi esquecido. Sem medo de parecer exagerado, disse ao jornalista Arturo Lezcano que Dener tinha bola para ser maior que Messi, mas seu temperamento por certo o impediria de triunfar no duro futebol alemão, destino assinado na noite anterior da manhã em que seu fado foi cumprido à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas.

Não fosse seu temperamento arredio, talvez estivesse em Paris com a Seleção Brasileira, que estava concentrada para um amistoso com o PSG que acabou 0 a 0, como uma espécie de boicote de uma bola enlutada, como se estivesse se recusando a fazer festa quando queria apenas chorar a perda do seu maior amor.


Hoje, 19 de abril, faz 23 anos que Dener se foi, justamente a idade que tinha quando o absurdo se consumou. E, mais uma vez, pouco ou nada foi dito sobre o gênio que, como Enéas, reinou no meio-campo da Portuguesa e só parou na morte, seu marcador mais desleal, que chegou de surpresa, como um zagueiro maldoso que lhe atinge por trás sem sequer procurar pela bola. O deus irônico e farsante que Drummond supôs que regularia o futebol quis levá-los cedo demais. Se de Garrincha este deus retirou a capacidade de perceber sua condição de agente divino, a Dener ele negou o tempo. E não há outro Mané. Nem outro Dener. E as tristezas sempre voltam.

Verdade seja dita, chances para ele não faltaram, mas uma escapada da concentração, ainda na época de Paulo Roberto Falcão, afastou da equipe nacional o maior talento que o futebol brasileiro viu no fim do século passado. Dener não estava nos planos de Parreira para a Copa de 94 por causa dos inúmeros casos de indisciplina que começou a colecionar ainda na base da Portuguesa e que o fizeram ir e voltar ao profissional da Lusa incontáveis vezes. Ou então, sob a orientação de Telê Santana, que o indicou para o São Paulo campeão de tudo, o menino que cresceu na Vila Ede, Zona Norte da capital paulista, talvez tivesse outro caminho. Conjecturas. Apenas conjecturas que nunca serão provadas e que servem apenas para aumentar o mito. Um mito que não pode ser esquecido, sob pena de se enterrar uma das mais bonitas páginas do futebol brasileiro.


Quando morreu, naquela estúpida madrugada de 19 de abril de 1994, a caminho de São Januário, Dener estava no banco do carona do Pássaro Branco, que era como ele chamava o seu Mitsubishi Eclipse, de placa DNR-1010 e que foi uma de suas exigências para a renovação de mais um dos contratos com a Lusa. No momento em que Otto Gomes Miranda, amigo que conduzia o carro, colidiu numa árvore na lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, Dener dormia.

Coube a André Kfouri a definição que mais se aproximou da perfeição: “Se estivesse acordado, certamente teria driblado a morte”.

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Não mudarei meu nome

(Foto: Rodrigo Corsi / FPF)
“Quer saber? É bem feito! Mudo meu nome se os clubes unirem-se de fato para reverter isso. Principalmente os cartolas paulistas, esse bando de frouxos que diz amém a tudo que ele faz desde a época da FPF, quando já eram picados pelo escorpião de Esopo.”

Com este parágrafo eu encerrei um dos meus últimos textos, como você, leitor, pode conferir aqui. Eu tratava do passa-moleque que a CBF deu nos clubes ao elaborar, revisar, aprovar e promover a mudança do estatuto, que tirava poderes dos clubes e aumentava os das federações, todas elas rezando no catecismo delneriano, evidentemente.

Um escárnio que fere todas as leis do esporte.

Dias depois, alguns dirigentes se mostraram indignados com a questão. Modesto Roma Jr, presidente do Santos, disse em reportagem de Gabriela Moreira, da ESPN, que “não é ganhar ou perder, temos o direito de opinar. O que fizeram deixa os clubes com uma pergunta: é isso o que nós queremos? É este futebol que nós estamos buscando?”

A CBF até se adequou à Medida Provisória nº 671, de 19 de março de 2015, a chamada MP do Futebol e, dentro da reforma estatuária que aprovou enquanto a Seleção Brasileira estava em campo, não por coincidência, deu voto aos clubes da Série B, mas alterou o peso dos votos das federações estaduais para 3 e dos clubes da Série A para 2, mantendo maioria. Numa situação em que os clubes queiram tirar força dessas federações, perderiam por 81 a 60, isso se todos os clubes votantes fecharem questão.

Leia também:
O escorpião e o sapo

Eis que Bahia, Atlético-PR, Coritiba, Atlético-MG, Flamengo e Fluminense resolvem promover um encontro para discutir o assunto. Escolheram a cidade de São Paulo para atrair os grandes clubes da capital paulista, mas os clubes da São Paulo, incluindo o Santos de Modesto Roma Jr, fecharam questão em torno da decisão da Federação Paulista de Futebol, sob as ordens do todo poderoso Reinaldo Carneiro Bastos, de boicotar o movimento anti-CBF que começava a ser desenhado para questionar as mudanças na carta maior da entidade (que deveria ser moralmente também) maior do futebol nacional.

Mas não é de hoje que a CBF anda à margem da Lei. O parágrafo 5º do artigo 20 da Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998, popularmente conhecida como Lei Pelé, diz que “é vedada qualquer intervenção das entidades de administração do desporto nas ligas que se mantiverem independentes”. O parágrafo 6º do mesmo artigo diz que “as ligas formadas por entidades de prática desportiva envolvidas em competições de atletas profissionais equiparam-se, para fins do cumprimento do disposto nesta Lei, às entidades de administração do desporto, que são as federações estaduais e a CBF. mas esta, em estatuto, se dá o direito de permitir ou não a realização destas ligas, o que de antemão inviabiliza qualquer tentativa de independência, uma vez que a FIFA e a Conmebol só reconhecem representantes de torneios que tenham o aval da tal entidade nacional de administração do desporto.

Exemplos de ligas bem sucedidas não faltam: Alemanha, Espanha, França, Inglaterra, Itália e Portugal, para ficar somente nas seis maiores da Europa, foram criadas em linha com as federações locais (as tais entidades de administração desportivas), que as reconhecem e indicam seus campeões e equipes bem classificadas como seus representantes em torneios internacionais. A Lei Pelé, em tese, até permite a criação de ligas independentes, mas quem investiria em um campeonato que seja como a Transamazônica, levando nada a lugar nenhum? Sem a participação dos grandes clubes, que não poderiam participar de um torneio pirata, seria natimorta ou morreria pouco tempo depois, como foi o caso da Dimayor, a Division Mayor del Futbol Colombiano, ou, caso queiram, a histórica Liga Pirata da Colômbia, que não reconhecia o valor legal dos passes dos jogadores de clubes de outros países e, por isso mesmo, foi considerada “pirata”, de acordo com o próprio Jules Rimet.

Ela se aproveitou da greve do fim dos anos 1940 no futebol argentino e no uruguaio para recrutar craques, convencendo-os com o melhor argumento possível: salários que seus clubes não poderiam pagar. E assim jogadores como Adolfo Pedernera, Alfredo Di Stefano e Nestor ‘Pipo’ Rossi, todos titulares da fortíssima Argentina tricampeã sul-americana, foram para o Millonarios de Bogotá, mas, com exceção de La Saeta Rubia, que foi para o futebol espanhol, todos foram devolvidos à La Maquina, como era conhecido o timaço do River Plate. Era assa a exigência da FIFA para reconhecer a Dimayor e cancelar as sanções ao futebol colombiano. Como dado histórico, os brasileiros de destaque que foram atrás do eldorado foram Elba de Pádua Lima, o Tim, já em fim de carreira, e o genial Heleno de Freitas, que estava brigado com Flávio Costa e não tinha a menor chance de ir à Copa de 1950.

Mais uma vez, os clubes têm a chance de se livrarem do jugo de uma entidade que sucateou o maior bem cultural do país, o futebol, mas precisam ter coragem para isso, coisa que ao menos os de São Paulo não mostraram que têm. São covardes ou mal intencionados.

Não sei o que é pior.