quinta-feira, 27 de abril de 2017

A pior face do ser humano

DESUMANO Vale tudo no futebol? (Getty Images)
“Ó vascaíno, por que estás tão triste? Mas o que foi que aconteceu? Foi o Dener que bateu na árvore, quebrou o pescoço e depois morreu” (elementos vestidos com a camisa do Flamengo cantaram para provocar a torcida do Vasco em virtude da morte do meia Dener, em 1994)

“Foi no Jamor  que o lagarto ardeu” (ultras imbecis da No Name Boys, torcida extremista e violenta do Benfica, entoam este grito sempre que Benfica e Sporting se enfrentam (em qualquer modalidade), em alusão à morte do torcedor Rui Mendes, atingido por um sinalizador (chamado de “very light“, em Portugal) na final da Taça de Portugal de 1996, no estádio do Vale do Jamor, em Lisboa).

“Ah, quem me dera que o avião da Chapecoense fosse do Benfica” (vagabundos da Super Dragões, uniformizada do Porto, durante uma partida de handebol entre Porto e Benfica, em 2017)

“Não é mole não, você vai cair igual o Fernandão” (grito ouvido durante um Corinthians x Internacional de 2016 em referência ao acidente de helicóptero que vitimou o atacante Fernandão dois anos antes)

“Ão ão ão, abastece o avião” (torcida organizada do Criciúma, durante o jogo com a Chapecoense, pelo Campeonato Catarinense de 2017).

IMBECIS "Torcida" do Tigre que cantou sobre o avião
 da Chapecoense (Reprodução/Twitter)
O psicólogo e sociólogo francês Gustave Le Bon publicou em 1895 a tese da Psicologia das Multidões, segundo qual o contato com as pessoas traz influências pelo contágio, em que há influência no comportamento individual a partir de ações tomadas no grupo. As opiniões e crenças das multidões são propagadas por contágio e não pela razão. Este princípio é citado n’O Livro dos Insultos, de HL Mencken, no capítulo “A Turba”, que diz que, quando ombreados, homens descem um ou dois degraus intelectualmente dizendo e têm as mesmas reações mentais e intelectuais de pessoas inferiores nestes sentidos.
Menckens, brilhante jornalista americano do início do século XX, discorda. De acordo com ele, trata-se de uma rara oportunidade de exprimir sua verdadeira face em segurança. Isso foi escrito em 1918. Tendo a concordar com ele, Mencken. Hoje, as oportunidades de aglomeração de palermas dão-se todos os dias e de diversas formas. As mídias sociais são um exemplo disso, mas vamos nos ater às torcidas organizadas.

Comecei este texto citando cinco momentos infelizes, para dizer o mínimo, que ocorreram dentro de campos de futebol do Brasil e de praças esportivas portuguesas. Elas são mostras incontestes de como Mencken tinha razão ao associar o comportamento de massas com a verdadeira cara desta escumalha. 

Mostram o pior do ser humano, sua repugnância, ainda mais no ambiente do estádio de futebol, esse território sem lei onde os imbecis creem tudo poder.

Referência nacional nos estudos da violência no futebol, o sociólogo Maurício Murad, em entrevista ao site Goal Brasil, explica a sensação de impunidade e pleno poder que existe nas praças esportivas, e sua opinião vai ao encontro da teoria de Le Bon. “O futebol é um evento cultural muito forte das multidões e da paixão humana. A paixão e a multidão tudo acentuam. Então, a multidão tocada pela paixão é muito propícia a exageros, transgressões e ultrapassagem dos limites razoáveis da vida, da convivência humana. São minorias estúpidas, com um grau de irracionalidade, violência e ódio muito intensos e que pensam que o universo do futebol permite tudo; que em um estádio ou no meio da multidão você pode tudo que você não pode na, digamos, vida real”.

É um quadro desolador. Em 2014, no Derby Della Moli, torcedores da Juventus ironizaram a Tragédia de Superga (1949), quando 42 pessoas morreram, entre elas 18 jogadores do supertime do Torino (base da Squadra Azzurra que disputaria a Copa de 1950), quando o avião que trazia o Toro bateu na torre da catedral de Superga. Não é raro os rivais do Manchester United fazerem troça com o acidente que matou 23 pessoas em Munique, entre elas, integrantes da delegação do United.

Mas o que os atinge? A execração moral não os incomoda, uma vez que, entre os iguais, ganham projeção e respeito dentro da organização que se classifica como torcida organizada. Na verdade, são gangues que se aproveitam da conivência do poder público e dos próprios clubes para, como disse Murad, fazer tudo o que não poderia em outros lugares e ambientes fora do futebol. A ascensão da Barra Brava mais temida da Argentina deu-se dentro deste panorama, como conta La Doce – a Explosiva História da Torcida Organizada MaisTemida do Mundo, o excelente e indispensável livro do jornalista argentino Gustavo Grabia sobre a gangue organizada do Boca Juniors.


Esta é a pior face do ser humano. Fazer troça com tragédias desta natureza não é aceitável, não há exceção, seja pela morte de um ídolo, um adepto ou uma equipe inteira. Não se trata de um rebaixamento ou uma derrota vexatória. Há limites sim para a zoação, e o respeito da vida humana é um deles, se não o principal. A falta de discernimento e empatia é o primeiro passo para a barbárie e, daí, para a prova inequívoca de que a humanidade é uma experiência que não deu certo. 

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