DESUMANO Vale tudo no futebol? (Getty Images) |
“Ó vascaíno, por que estás tão triste? Mas o que foi que
aconteceu? Foi o Dener que bateu na árvore, quebrou o pescoço e depois morreu”
(elementos vestidos com a camisa do Flamengo cantaram para provocar a torcida
do Vasco em virtude da morte do meia Dener, em 1994)
“Foi no Jamor que o
lagarto ardeu” (ultras imbecis da No Name Boys, torcida extremista e violenta do
Benfica, entoam este grito sempre que Benfica e Sporting se enfrentam (em
qualquer modalidade), em alusão à morte do torcedor Rui Mendes, atingido por um
sinalizador (chamado de “very light“, em Portugal) na final da Taça de Portugal
de 1996, no estádio do Vale do Jamor, em Lisboa).
“Ah, quem me dera que o avião da Chapecoense fosse do
Benfica” (vagabundos da Super Dragões, uniformizada do Porto, durante uma
partida de handebol entre Porto e Benfica, em 2017)
“Não é mole não, você vai cair igual o Fernandão” (grito
ouvido durante um Corinthians x Internacional de 2016 em referência ao acidente
de helicóptero que vitimou o atacante Fernandão dois anos antes)
“Ão ão ão, abastece o avião” (torcida organizada do
Criciúma, durante o jogo com a Chapecoense, pelo Campeonato Catarinense de
2017).
IMBECIS "Torcida" do Tigre que cantou sobre o avião da Chapecoense (Reprodução/Twitter) |
O psicólogo e sociólogo francês Gustave Le Bon publicou em
1895 a tese da Psicologia das Multidões, segundo qual o contato com as pessoas
traz influências pelo contágio, em que há influência no comportamento
individual a partir de ações tomadas no grupo. As opiniões e crenças das
multidões são propagadas por contágio e não pela razão. Este princípio é citado
n’O Livro dos Insultos, de HL Mencken, no capítulo “A Turba”, que diz que,
quando ombreados, homens descem um ou dois degraus intelectualmente dizendo e
têm as mesmas reações mentais e intelectuais de pessoas inferiores nestes
sentidos.
Menckens, brilhante jornalista americano do início do século
XX, discorda. De acordo com ele, trata-se de uma rara oportunidade de exprimir
sua verdadeira face em segurança. Isso foi escrito em 1918. Tendo a concordar
com ele, Mencken. Hoje, as oportunidades de aglomeração de palermas dão-se
todos os dias e de diversas formas. As mídias sociais são um exemplo disso, mas
vamos nos ater às torcidas organizadas.
Comecei este texto citando cinco momentos infelizes, para
dizer o mínimo, que ocorreram dentro de campos de futebol do Brasil e de praças
esportivas portuguesas. Elas são mostras incontestes de como Mencken tinha
razão ao associar o comportamento de massas com a verdadeira cara desta
escumalha.
Mostram o pior do ser humano, sua repugnância, ainda mais no
ambiente do estádio de futebol, esse território sem lei onde os imbecis creem
tudo poder.
Referência nacional nos estudos da violência no futebol, o
sociólogo Maurício Murad, em entrevista ao site Goal Brasil, explica a sensação
de impunidade e pleno poder que existe nas praças esportivas, e sua opinião vai
ao encontro da teoria de Le Bon. “O futebol é um evento cultural muito forte
das multidões e da paixão humana. A paixão e a multidão tudo acentuam. Então, a
multidão tocada pela paixão é muito propícia a exageros, transgressões e
ultrapassagem dos limites razoáveis da vida, da convivência humana. São
minorias estúpidas, com um grau de irracionalidade, violência e ódio muito
intensos e que pensam que o universo do futebol permite tudo; que em um estádio
ou no meio da multidão você pode tudo que você não pode na, digamos, vida
real”.
É um quadro desolador. Em 2014, no Derby Della Moli,
torcedores da Juventus ironizaram a Tragédia de Superga (1949), quando 42
pessoas morreram, entre elas 18 jogadores do supertime do Torino (base da
Squadra Azzurra que disputaria a Copa de 1950), quando o avião que trazia o
Toro bateu na torre da catedral de Superga. Não é raro os rivais do Manchester
United fazerem troça com o acidente que matou 23 pessoas em Munique, entre
elas, integrantes da delegação do United.
Mas o que os atinge? A execração moral não os incomoda, uma
vez que, entre os iguais, ganham projeção e respeito dentro da organização que
se classifica como torcida organizada. Na verdade, são gangues que se
aproveitam da conivência do poder público e dos próprios clubes para, como
disse Murad, fazer tudo o que não poderia em outros lugares e ambientes fora do
futebol. A ascensão da Barra Brava mais temida da Argentina deu-se dentro deste
panorama, como conta La Doce – a Explosiva História da Torcida Organizada MaisTemida do Mundo, o excelente e indispensável livro do jornalista argentino
Gustavo Grabia sobre a gangue organizada do Boca Juniors.
Esta é a pior face do ser humano. Fazer troça com tragédias
desta natureza não é aceitável, não há exceção, seja pela morte de um ídolo, um
adepto ou uma equipe inteira. Não se trata de um rebaixamento ou uma derrota
vexatória. Há limites sim para a zoação, e o respeito da vida humana é um
deles, se não o principal. A falta de discernimento e empatia é o primeiro passo
para a barbárie e, daí, para a prova inequívoca de que a humanidade é uma
experiência que não deu certo.
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