FUI EU, PROFESSOR Rodrigo Caio pisa no goleiro Renan ao tentar proteger a bola em jogada com o atacante Jô, do Corinthians. Foto: Daniel Augusto Jr/Ag. Corinthians |
“De
tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver
crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus,
o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser
honesto”. O trecho do discurso proferido por Rui Barbosa no Senado Federal em
1914, portanto há mais de cem anos, é citado no livro “Ética e Vergonha naCara”, de Mario Sergio Cortella e Clovis de Barros Filho.
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Cortella
fala do “se é bom para mim, tudo bem”, que classifica como ética de
conveniência ou relativismo moral. Ele argumenta usando o caso do corredor
espanhol Iván Fernández Anaya, que não quis vencer uma corrida de crosscountry
em 2012 ao perceber que o queniano Abel Mutay, que venceria, parara antes por
se confundir com a sinalização e achar que já tinha vencido a prova. “O que
teria dito minha mãe?”, pergunta Anaya ao repórter que questionou a atitude.
Para Cortella, a mãe é a última pessoa a quem se quer envergonhar.
No
dia seguinte após o Corinthians vencer o São Paulo por 2 a 0 no Morumbi, o
zagueiro Maicon disse que preferia ver a mãe do adversário chorando à
sua . Talvez o xerifão com cara de mau e futebol igualmente assustador não
tenha parado para pensar no que sua mãe pensaria se o filho visse algo injusto
e calasse por e para ser beneficiado.
A
atitude de Rodrigo Caio ao confessar ter pisado no goleiro de seu time ao
tentar proteger a bola da investida do atacante Jô, evitando assim um injusto
cartão amarelo ao adversário (que o suspenderia do jogo da volta, no qual a sua
equipe precisa vencer por boa margem de gols para seguir adiante), nem deveria
levantar tanta polêmica. E como toda polêmica em tempos de redes sociais para
seu fomento, a discussão é a mais rasteira possível.
O
tema deveria ser consenso, mas apenas é debatido porque nunca se pensou tanto
no próprio umbigo. Ou melhor, porque perdeu-se a vergonha faz tempo, mas agora
resolveram escancarar, como se fosse feio ser honesto, coisa de otário mesmo.
Como cantou Gardel em Cambalache (e Raul Seixas traduziu dois anos antes de
partir), “quem não rouba é um imbecil”.
Torcedores
revoltados com a atitude do jogador condenam sua honestidade a ponto de
atribuir a ela o novo insucesso de sua equipe, mesmo que esta esteja se
arrastando em campo, nos chamados jogos grandes. Como se a virtude fosse
errada, como se fosse justificável ganhar a todo custo.
Não
é.
A
competitividade no futebol não pode ser desculpa para que seja instituído uma
espécie de território sem lei, onde tudo é permitido, desde uma simulação para
obtenção de vantagem imerecida à ofensa racial, buscando o destempero do
contrário. O futebol nada mais é que a metáfora da vida e isso explica essa
elasticidade moral vista quando a bola rola, quando Fred cava um pênalti na
estreia da Copa, quando Rivaldo simula uma bolada no rosto, quando Henry leva a
mão à bola para classificar a França. Aplaude-se o esperto pelo resultado
obtido. Resultado: é o que diferencia também o esperto do trouxa.
Mas
não se enganem. O mesmo relativismo moral cunhado no diálogo entre Cortella e
Barros Filho explica os elogios dos jogadores corintianos, que não tomaram
atitude semelhante quando tiveram oportunidade. Sem medo de errar, fosse um
companheiro de time deles a fazer o que fez Rodrigo Caio, o discurso seria
outro.
O
excelente Moacyr Franco, na Praça da Alegria, criou o personagem Mendigo, que andava
com um jornal amassado sob o braço e repetia o bordão “e quanto é que eu levonisso?” quando reclamava da vida. A resposta a esta pergunta tem determinado a
distância entre o esfregar das mãos e a indignação.
O
problema é cultural, é de berço, é de (falta de) retidão de caráter. O cidadão
que, ao se vestir de torcedor, aceita qualquer cambalacho que favoreça seu
time, despe-se da moral. Mas ao contrário do Mendigo de Moacyr Franco, sua
mendicância é vil, é desprezível. Ele mendiga por favores, por benesses, mesmo
que seja à margem da lei e em todos os níveis, desde o cafezinho para o guarda
à propina do fiscal.
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