NOITE DOS ABRAÇOS Esta foi a cena mais repetida na histórica noite algarvia (Soccrates Image/Getty) |
Como quase sempre nunca é nunca, ele veio! Não, o Rei não voltou do Norte da África. Quem apareceu foi uma atuação digna do poderio de quem leva as cinco quinas ao peito pode apresentar. Digna, não! Chamemo-la pelo nome: histórica, a maior goleada de sempre. E logo contra um adversário cuja mansidão não se adivinharia pela classificação. Os 10 pontos que colocam Luxemburgo a sonhar em estar pela primeira vez na fase final de uma competição sugeriram um jogo complicado, como o foi o encontro sofrido e sofrível com os eslovacos sexta-feira passada, com pontos e organização para discutir olhos nos olhos pela cimeira do grupo com a ainda engripada máquina portuguesa, que mostrou em Bratislava que muito talento não forma equipa.
Era preciso mudar. E assim foi: o treinador espanhol Roberto Martinez, ainda à procura de entender como se canta o fado da bola do lado de cá da Península Ibérica, apresentou uma revolução no onze, com cinco alterações, quatro por opção e uma pela necessidade imposta pelo segundo cartão amarelo que o capitão Cristiano Ronaldo viu ao quase esfregar os pitons da bota na fuça do goleiro eslovaco Dúbravka quando as pernas não acompanharam-lhe o raciocínio e a bola escapou do irremediável destino, cantado já por 123 vezes, mas que tem teimado a falhar conforme o tempo avança.
É o fado de todos nós, afinal.
Deixando de lado o capitão que tanto nos deu, Gonçalo Ramos, que nasceu em Olhão, a 18 km do sítio da partida, já havia sido anunciado pelo selecionador tão logo acabou o jogo anterior. Diogo Dalot foi da direita para a esquerda, no lugar ocupado por João Cancelo, que foi ter no de Nélson Semedo, no banco de suplentes, saltando o jogador do Wolverhampton para o onze. Quem também começou a partida foi Gonçalo Inácio, deixando Antonio Silva sentado ao pé do treinador. No meio, Danilo rendeu Palhinha e Vitinha foi trocado por Diogo Jota, na mais radical das alterações.
A saída do médio do PSG possibilitou que Bruno Fernandes e Bernardo Silva, dois dos seis sobreviventes iniciais (além de Dalot, Diogo Costa, Rúben Dias e Rafael Leão foram titulares nos dois jogos), tivessem liberdade para estar onde mais lhes apetecesse, desde que em combinações, formando então um diabólico 4-1-4-1, que variava para 3-4-3 de acordo com o lugar onde estivesse Danilo, ora trinco, ora terceiro central a sair jogando, resolvendo um dos problemas vistos na capital eslovaca: a falta de flexibilidade da equipa. Qualquer que fosse a definição numérica, que tanto engessa reflexões e discussões, haveria de ter mais tipos de verde e vermelho no mesmo sítio da bola do que os gajos de branco. Outro aborrecimento é o que se tem quando Cristiano joga: se por um lado tem-se o maior artilheiro do futebol de seleções da história, o que demanda mais atenções dos contrários, do outro perde-se muito da capacidade de pressionar a saída de bola e, tendo-a roubado nas proximidades da área, terá sempre, ou na maioria das vezes, os pés de Bernardo e Bruno a decidir-lhe os caminhos.
Em resposta, Luc Holtz, que ocupa o cargo de treinador de Luxemburgo há 13 anos e é um dos responsáveis por transformar o tradicional saco de pancadas em sério interessado em estar na Eurocopa que terá lugar na Alemanha - quem duvida, que olhe os últimos resultados e a posição na tabela -, apresentou uma dura linha de cinco a guarnecer os quatro defensores à frente do guarda-redes Moris e apenas o jovem Alessio Curcis no "ataque" (não contei, mas não me surpreenderei se ele tiver tocado na bola mais que dez vezes), imaginando povoar o setor onde Bernardo Silva e Bruno Fernandes trabalham. O problema para ele é que ninguém saberia dizer que lugar seria este, pois todo o relvado do belíssimo estádio do belíssimo Algarve serviu de passarela para os gajos que jogam cada um num rival de Manchester, mas davam a impreesão de que jogam juntos desde alguém os colocou pela primeira vez ao pé de uma bola.
Daí para a maior goleada de sempre da seleção Portuguesa foi mais natural que pintar os bigodes do tinto do vinho. Os dois primeiros ataques, mesmo que tivessem demorado um bocadinho, resultaram em golos: Bruno Fernandes bateu escanteio rasteiro para a área e a bola voltou pra ele, que ajeitou e colocou de três dedos na cabeça de Gonçalo Inácio, como num treino banal nos tempos em que o defensor era uma promessa da base do Sporting, para destravar o marcador. Depois, a asfixiante pressão fez com que Bruno Fernandes mordesse e buscasse Bernardo Silva; dele para os pés de Gonçalo Ramos e, deste, para as redes e o jogo já caminhava para uma vitória tranquila. O gajo de Olhão tem olhos grandes para o golo.
Mas usemos o adjetivo histórica: após dois desperdícios de Diogo Jota, o trator Rafael Leão aproveitou o espaço deixado por Diogo Dalot, que afunilava e abria uma autêntica pradaria para Leão - ou leopardo? -, que fez o que de melhor sabe fazer: engoliu duma só bocada dois pobres defensores, presas fáceis que estavam à frente e, muitos metros depois, e com eles lá para trás, encontrou Gonçalo Ramos na área; o giro, o drible, a noção de onde estão ele, os adversários, a bola e o gol para juntar estes dois e fazer o terceiro, tudo isso num espaço de tempo que seria insuficiente para comportar a frase mais justa para descrever a jogada: Que golão do caraças! No final do primeiro tempo, Bruno Fernandes resolveu que seu pupilo dos tempos em que a academia do Sporting ainda não tinha o nome do CR7 não ficaria atrás do outro Gonçalo, o que foi forjado para os golos no Seixal, e o defensor com coração de artilheiro também bisou.
Mesmo resolvido em 45 minutos, o jogo tem ao menos 90 - ou mais de 100, como tem sido depois da Copa. Passados 12 minutos desde a volta do recreio, os lusos resolveram atrair os oponentes, que, verdade seja dita, jamais abdicaram de jogar ou foram violentos, roçando a inocência e foram mais plateia do que propriamente adversários. A bola passeou pelos três centrais - "superioridade numérica em todos os setores do campo" é o mantra que deveria estar escrito na parede de toda a gente que lida com este negócio de bolas e pés - e veio ter cá em Nelson Semedo, que convidou Bruno Fernandes e Bernardo Silva para o picadinho. Bola aqui-e-logo-ali, foi o suficiente para desmantelar o que sobrou da defesa e o passe longo do craque do Manchester United foi ter no rival do Liverpool, Diogo Jota; este levou, ajeitou com a cabeça a soltou o sapato para a mão cheia de golos.
Se a intenção de Roberto Martinez ao convocar os agora barcelonistas João Cancelo e João Félix quando estes ainda eram estorvos de seus antigos treinadores era dar-lhes confiança, nada mais coerente que lançá-los contra adversários tão mansinhos, rendendo Nelson Semedo e Gonçalo Ramos, provando a quem duvida que o comandante de ataque pode sim sair antes do fim do jogo sem reclamar, o que é quase uma novidade para toda uma geração de torcedores em Portugal. O benfiquista de coração Bernardo Silva, que espalhou seu perfume em campo, deu lugar a outro cujo músculo cardíaco também é encarnado, embora dedique seu talento ao Braga, Ricardo Horta. Neste instante, com Portugal tendo três dos dez da linha frios, Luxemburgo teve sua única chance de gol com o luso-luxemburguês de raízes angolanas e destaque na Bundesliga, Leandro Barreiro, mas Diogo Costa largou as palavras cruzadas a tempo de evitar o golo com uma boa defesa.
O lance seguinte foi mais uma das mostras das valências de Portugal quando joga à Portugal: Rúben Dias esticou, ainda de seu campo, a bola para Diogo Jota e este dominou, ajeitou o corpo e serviu para Ricardo Horta, como se o esférico fosse uma bola de Berlim salpicadinha de açúcar. Se José Silvério tivesse narrado o jogo, diria que "a bola chegou pedindo me chuta, me chuta, me chuta e ele chutou! Um golaço de Ricardo Horta, no ângulo de Moris, que nada pôde fazer. Moris (sobe o BG), vai buscar! Portugal, impiedoso, tem seis; Luxemburgo não tem nada, Wanderley Nogueira!" [n.e. que saudade da narração do Pai do Gol!].
O sétimo gol de Portugal, já com "árabes" Otávio e Rúben Neves nos lugares de Rafael Leão e Danilo - a essa altura, o terceiro central a buscar a bola já era desnecessário, uma vez que Luxemburgo estava em contenção de danos -, foi o primeiro e único a não constar o nome do assistente, já que Diogo Jota buscou João Félix para a tabela, mas este passou da bola e ela, rebatida por um defensor que talvez nem sabia direito onde estava, mas certamente não era onde queria estar, sobrou para o camisola 21 dizer "que história é esta, pá? Não são só os Gonçalos bisam!"
Uma prova incontestável de que o plano de Roberto Martinez roçou a perfeição é que, mesmo com os olhos postos na baliza contrária o tempo todo, o primeiro impedimento do jogo aconteceu somente no minuto 38 do segundo tempo. Atordoado, Luxemburgo tentou sair trocando passes, mas o apetite português era insaciável e Ricardo Horta roubou a bola, avançou contra a defesa já capitulada e achou Bruno Fernandes. Quem deu três passes para golos merece também o seu, não é mesmo? O placar já igualava as maiores goleadas de sempre de Portugal: 8-0 contra Liechtenstein, em 1994 e 1999, e Kuwait, em 2003. Se não era o suficiente para ombrear os 10-0 que Portugal, ainda incipiente, levou nos cornos da Inglaterra (1947) e da Áustria (1953), ao menos faltava um para, além de marcar a maior vitória de sempre da equipa das Quinas, igualar o histórico 9 a 0 da Espanha no jogo classificatório para a Copa da Itália que serviu como empurrão (estímulo seria um eufemismo dos mais desapropriados) para transformar de vez o chutar a bola com uma caneta na orelha. E este veio com a classe de que se espera de João Félix desde que ele despontou no Benfica de Bruno Lage: passe a receber de Rúben Neves em corrida paralela à linha de fundo, a um ou dois metros da entrada da área, um toque para dominar, dois para encontrar a brecha e o terceiro para soltar a paulada, em arco, cercado por seis, para fazer o 9 a 0, n'altura, Luc Holtz, que abandonou seu posto no oitavo tento, já havia voltado ao bance de suplentes a tempo de contemplar a arte de Félix.
No sexto jogo de Martinez, a sexta a vitória e o principal: um futebol à Portugal. Na véspera, o treinador disse que "é importante para mim conhecer melhor os jogadores e aquilo que podemos fazer para melhorar a flexibilidade tática". O desafio é fazer o mesmo tendo Cristiano Ronaldo a titular, e ele deverá sê-lo em outubro, quando Portugal receber a Eslováquia no Dragão, casa do Porto, no jogo em que, caso vença novamente, o passaporte lusitano será carimbado para a sua nona participação em Eurocopas, a oitava seguida. Eis a dúvida: um futebol novamente à Portugal, como o da belíssima noite algarvia, ou o aborrecimento de noventa e tantos minutos que vez ou outra se impõe para fazer toda a malta duvidar de si? Pensando bem, nada mais à Portugal que isso.