Uma mulher foi estuprada. Ela errou em usar saia curta?
Pois é exatamente essa a questão que coloco antes de escrever
a convite do editor do Bola de Bigode sobre os erros do Partido dos
Trabalhadores que culminaram com o golpe de 2016. Pois assim como o estupro é
culpa do estuprador, o golpe de estado é uma ação espúria do bloco golpista,
formado por mídia, burguesia subordinada ao imperialismo, congresso e setores reacionários
do judiciário, que afastou a presidente Dilma Rousseff[1].
Ponto. Nenhum erro petista pode justificar o injustificável.
A partir de agora, um breve balanço sobre os erros do PT após
o período no governo federal que culminou com o crime praticado pelos capangas
do inominável.
Quem é PT, afinal?
O debate médio é pautado pela imprensa burguesa, cujo
discurso é construído para confundir, não para facilitar a compreensão das
diferenças entre a aparência e a essência de um determinado objeto (no caso
aqui, o Partido dos Trabalhadores). Logo, no noticiário o PT é mostrado como tudo
aquilo ligado ao governo federal, enquanto petistas são seus apoiadores,
beneficiários ou críticos que reconhecem alguns méritos. Falamos também de
movimentos sociais e sindicatos, aqueles que são mostrados como pessoas que não
trabalham e vivem às custas do erário para atrapalhar o trânsito. É falso e
isso é intencional.
Imerso em informações jogadas em bateladas de forma
proposital e aleatória no caldo ideológico chamado opinião pública, o
leitor/expectador decodifica de forma confusa tudo que se fala sobre esse PT fictício.
Entende como Partido dos Trabalhadores todo o campo da esquerda política, caracterizado
pela corrupção.
Estamos falando de quase quatro décadas de propaganda
antipetista no noticiário. Como o crime é algo ligado aos bairros pobres, o PT
é também um conjunto de pobres que estão tomando conta da nação. Possuem um
braço armado (o PCC) e vivem às custas do governo com bolsas. Por inferência,
se tem pobre beneficiado só pode ser um bando de desonestos, a ponto de fazer
filhos apenas para receber Bolsa Família. Cola até na periferia.
É tão estapafúrdio quanto dizer que a classe média faz filho
apenas para deduzir dependente no imposto de renda e fica a vida inteira
vagabundeando para viver do dinheiro da restituição. Mas não se acredita nesse
absurdo porque não se repete à exaustão. Tal tipo de interpretação
esquizofrênica, psicopata e sociopática é estimulado pela imprensa burguesa com
notícias marotas sobre fraudes de beneficiários em programas sociais, bem como
sobre pessoas que usam o dinheiro para comprar algo que não seja arroz e
feijão. Atende as preferências da parcela violenta, autoritária, racista,
machista e desonesta da população, concentrada na burguesia e em setores
abastados da classe média.
Quando os movimentos de fascistas, oportunistas e alienados
convocados pela Globo como massa de
manobra vão se manifestar nas ruas com proteção da Polícia Militar não estão se
posicionando contra o que o PT é, mas contra o que ele representa, ou seja, uma
ameaça de pobres, negros, LGBTs e trabalhadores que não se subordinam pela própria
natureza etc. Por falta de uma consciência própria se apegam ao ódio, esse
subproduto do medo, e a símbolos nacionais sem qualquer senso crítico ou do
ridículo, usando além da bandeira e do hino nacional as camisas da CBF. O
antipetismo fundamentado no combate à corrupção é essencialmente uma ideologia
fascistizante.
O Partido dos Trabalhadores, o PT real, é, grosso modo, uma
frente formada na década de 1980 a partir de movimentos de trabalhadores
rurais, sindicatos urbanos, comunidades eclesiais de base e intelectuais para
organizar setores “progressistas”[2]
sem as amarras da burocracia do Partido Comunista Brasileiro, a principal força
partidária brasileira na maior parte do século XX, objeto de propaganda
difamatória pela mesma imprensa durante mais de meio século.
Por conta da nova estrutura proposta na sua fundação, o PT possui
quase 30 correntes independentes que deliberam nos congressos do partido. Desde
1995, a corrente majoritária, do ex-presidente Lula e do ex-ministro José
Dirceu, dominou os processos eleitorais internos do PT, deixando as correntes
mais à esquerda isoladas das instâncias decisórias[3].
Iniciou-se ali um programa de alianças estratégicas com setores fisiológicos
para ganhar as eleições presidenciais, após perder para Collor (1989) e FHC
(1994). Assim foi sabotada a prática de fazer política a partir dos
trabalhadores rurais (continuado pelo MST) e das periferias, ainda presentes e
resistências petistas.
E quem é o “governo
do PT”?
Trata-se da articulação entre a corrente Construindo Novo
Brasil (CNB, do Lula) com setores fora do PT para realizar uma conciliação de
classes e permitir a distribuição de renda com ganhos para o empresariado local,
a falácia neoliberal do “ganha-ganha”.
No plano institucional, manter os acordos com aliados estratégicos da
direita com cargos públicos, o que não apenas deu afinidade quase carnal entre
Lula e partidos como PMDB, PC do B, PDT, PTB, PP, PR e PSC, mas também tornou
os sindicatos em mera burocracia paraestatal de apoio ao programa da CNB. Os
trabalhadores foram desmobilizados e a luta de classes foi negada.
Para garantir apoio eleitoral da massa pobre que sempre votou
na direita mais estapafúrdia, políticas sociais garantiram uma distribuição
ínfima da riqueza nacional, transformando Lula no novo pai dos pobres e mãe dos
ricos. Portanto, não se trata de um governo do PT, mas de uma corrente
majoritária do PT aliada a setores que tentam criminalizar o restante do
Partido dos Trabalhadores.
Se não entendeu, leia novamente. O Brasil não é para
amadores.
No primeiro sinal de crise e a possibilidade de ter que
aturar pobres comendo três vezes por dia durante mais 12 anos, desde 2014,
quando o projeto reacionário defendido por Aécio Neves foi rejeitado pelas
urnas,os próprios aliados estratégicos do PT, sejam partidários ou de setores
da burguesia (a financeira essencialmente), tentam remover a Dilma à força da
mesma forma com que um câncer corrói tudo que entende por corpo estranho.
O erro essencial do que André Singer chama de Lulismo[4]
foi pensar que pode ser parte de um clube que não está aberto a novas adesões. Não
soube ler o Brasil, as formas das classes primordiais (burguesia e
proletariado), a tendência de rupturas e crises do regime democrático. Acertou
sem querer em incluir a população mais pobre no que não havia possibilidades. O
Bolsa Família fez com que crianças não precisassem trabalhar na lavoura aos
cinco anos de idade, indo para a escola e produzindo cultura, reivindicando
espaço num ministério específico. A expansão do ensino técnico aumentou o valor
da força de trabalho.
A expansão universitária, mesmo feita de forma
equivocada, criou uma massa crítica de bacharéis, mestres e doutores vindos das
periferias. Sem querer querendo, a política do lulismo criou tanto a massa que apoiou
o golpe contra os próprios direitos como aquela que resiste hoje ao golpe pela
esquerda e irá um dia derrotá-lo ou criar condições para tanto. Afinal, nenhuma
ditadura é eterna.
Os erros do PT
subjugado pela CNB
Durante o trajeto do PT como frente progressista a um
amontoado de movimentos subjugados pela CNB, muitas fraturas ocorreram em nome
de práticas políticas éticas e em nome de uma “verdadeira esquerda”. A primeira
delas foi o PSTU de Zé Maria, ainda nos anos 1990. No entanto, de tão sectário
costuma fazer avaliações políticas similares às dos setores fascistas. O
Exército de Brancaleone que carrega a bandeira do partido não mobiliza trabalhadores
e se apropria pelo alto de sindicatos, aliando-se, nos processos eleitorais, à
direita contra a CUT e o PT. O antipetismo é sua razão de existir, por isso se
confunde tanto com a direita. Não é incomum a central Conlutas se aliar à Força
Sindical, do Paulinho Pereira da Silva, aquele mesmo da vanguarda do Eduardo
Cunha. Essa fratura que retarda mobilização e organização do proletariado à
esquerda serve apenas e nada mais como linha auxiliar da direita.
O segundo racha significativo foi a criação do Partido
Socialismo e Liberdade, nascido da expulsão de parlamentares do PT durante a
reforma da previdência imposta por Lula. A legenda catalisou setores de
gabinete e acadêmicos descontentes com os rumos da corrente majoritária. Formou-se
na prática para dar continuidade a mandatos que não teriam como se colocar nas
eleições dentro do próprio PT. Alguns dos que foram expulsos do Partido dos
Trabalhadores efetivamente não conseguem mais recuperar os cargos, como o
ex-deputado federal Babá e ex-senadora Heloísa Helena, hoje na Rede
sustentabilidade, a direita que carrega uma planta, liderada por Marina Silva.
Com a crise do “lulismo”, o PSOL se mostrou incapaz de acolher os movimentos
abandonados pela CNB. Em vez de organizar o trabalhador, como o PT fazia nos
anos 1980, organizou mandatos. Cresceu menos do que o PSC, por exemplo, que é
um partido fascista com base eleitoral nas igrejas protestantes. Reluta contra
a realidade que é a falta de capilaridade no proletariado, o que torna qualquer
partido em letra morta. Hoje disputa votos contra o PT, não contra a direita,
tornando-se aliado natural do PSTU e do novo PCB, um partido majoritariamente
acadêmico, também sem uma significativa ligação com o proletariado.
Para complicar, o PSOL do Rio de Janeiro foi procurado por
setores do PT para compor chapa contra Eduardo Paes. Muitos de seus membros
sequer quiseram discutir. Adicione-se a isso o procedimento isolacionista
durante eleições parlamentares. Poderia estabelecer alianças que levassem mais deputados
do que meia dúzia que ainda colhe frutos dos tempos de PT. Em SP, por exemplo, Ivan
Valente teve 450 mil votos e foi sozinho para a câmara, não puxou votos para
mais ninguém. É o preço de seu personalismo parlamentar. Quando Ivan Valente e
Chico Alencar não puderem mais concorrer, pois fazem aniversário todos os anos
e um dia todos morreremos, acaba a base eleitoral do partido. O PSOL é um irmão
brigado do PT que age de forma moralista e, por vezes, birrenta.
Por sua vez, os grupos que permaneceram no PT, subjugados à
CNB, não tiveram a capacidade de organizar um movimento anti-aliancista dentro
do partido e também aderiram à prática de troca de cargos. Uma vaga na Fundação
Perseu Abramo pode ser disputada com brigas de foice no escuro, a depender da
conjuntura. Igualmente não tiveram a iniciativa de articular um racha ou uma
composição com os setores que deixaram o PT. Levar movimentos com capilaridade
junto ao proletariado para o PSOL significaria isolar Lula, mas deixar Lula
significaria não ter uma massa de eleitores a seu dispor.
Também houve o movimento da esquerda para a direita, com a
saída de figuras caricatas e decadentes que aderiram ao golpismo criminoso,
como Fernando Gabeira, Eduardo Jorge, Cristóvão Buarque, Marta Vasconcelos (não
usem o sobrenome Suplicy, ela ganha votos com isso para sair nas páginas
amarelas da Veja) e a própria Marina Silva.
Por fim, vários grupos, muitos ainda filiados ao PT,
reuniram-se em movimentos sociais e ONGs que militam sem organização, o que
divide a luta contra a dominação burguesa. O maior exemplo foi o Movimento
Passe Livre, que bateu tanto em Fernando Haddad e poupou Geraldo Alckmin. Foi
expulso da própria manifestação e ensinou à direita como ocupar as ruas. Nesses
movimentos fragmentários pós-modernistas se nega a luta de classes por entender
que é uma forma de maquiar à esquerda o machismo, a LGBT-fobia e o racismo.
Todos erraram ao abrir mão da perspectiva revolucionária e
aderir ao programa de garantia de direitos dentro do direito burguês. Por uma
via mais longa, ou se acomodaram à troca de cargos ou também acharam que o
clube dos oligarcas estava aberto a novas adesões.
Novos erros são
necessários, jamais os mesmos
O PT foi formado para não repetir os erros do PCB, que era
cristalizado na burocracia e no centralismo democrático que, na prática,
acabava sendo autoritário, a pior herança do stalinismo. É efetivamente um
mérito, mas a falta de critério analítico e a flexibilidade com relação à
perspectiva de conquistas dentro das regras impostas pela burguesia levaram à
desorganização e à negação da luta de classes. Lamento informar a essa esquerda
que acabou de ser golpeada, mas Marx estava certo. Não apenas ele como Lênin,
Gramsci, Lukács, Trotsky, Rosa Luxemburgo e muitos outros. Num país em que os
golpes são mais corriqueiros do que cafezinho no final da tarde a única via é a
revolução. Como fazê-la é o tema de debate, não se ela deve ser feita.
A direita construiu o anticomunismo e usou o mesmo processo
exitoso contra o PCB para construir o antipetismo. Hoje é necessário criar um
novo partido que surja do proletariado, mas rompendo a influência ideológica da
direita que joga no lixo iniciativas populares anteriores. Como defendeu Marx
na abertura do 18 Brumário de Luís Bonaparte, no momento das crises os homens
buscam as gerações anteriores. Os golpistas fazem de modo que nós as
criminalizemos. Todo antipetismo é favorável a golpes, aos anteriores, ao atual
e aos futuros.
É preciso aproveitar a experiência histórica de PCB e PT,
dos partidos de outros países como o MAS (Bolívia), o PSUV (Venezuela) e a
Frente Ampla (Uruguai), apenas para citar alguns que não devem ser modelos, mas
antes boas referências. É preciso identificar que a imprensa e o direito
burgueses não são campos de luta e, portanto, devem ser combatidos. O estado
democrático de direito é uma condição para organizar a classe trabalhadora numa
perspectiva revolucionária. Contudo esse estado não pode ser o objetivo final
porque seu aparato todo foi montado para que a burguesia aplique golpes se
assim julgar necessário. Esse texto só existe porque vivemos o terceiro em 80
anos, isso sem contar as tentativas frustradas.
Igualmente não podemos cair na armadilha dos arroubos
pós-modernistas que rechaçam organização da classe trabalhadora, do
proletariado, tentando reinventar a roda e fragmentando os movimentos
populares. Se o inominável usurpador colocar três mulheres e dois negros
reacionários no ministério estará tudo resolvido, recriando a pasta da Cultura
cheia de homossexuais da TV Globo lá dentro, estará tudo resolvido? Porque se
além de conspirador ele tivesse um mínimo de bom senso já teria feito isso e os
movimentos de raça e gênero estariam procurando uma bandeira como barata
moribunda procura saída depois da borrifada de inseticida.
Não se pode cometer os mesmos erros, o que seria burrice.
São necessários erros novos, aqueles efetivamente essenciais ao aprendizado
político.
*Fabio Venturini é jornalista e
historiador, professor-adjunto no Departamento Multidisciplinar da Escola
Paulista de Política, Economia e Negócios da Universidade Federal de São Paulo
(EPPEN/Unifesp)
[1]
Não tratarei aqui sobre ser ou não um golpe de estado pelo simples fato de ser
um golpe. Foi tosco, vulgar, montado por ladrões, usando recursos
institucionais, mas não muda o fato de ser um golpe. Essa discussão é um
artifício ideológico dos próprios golpistas para desviar o foco do motivo de
toda a operação, que é o ataque aos trabalhadores para atenuar a crise de valor
da força de trabalho que vive o capitalismo em nível global. Não entrarei em
discussões com intelectuais vendidos ou com as pitonisas de internet, essa
massa de manobra golpista que sempre alga “você tem que respeitar a opinião dos
outros”. Com toda sinceridade do mundo, não pesquiso ditaduras e golpes de
estado há pelo menos 12 anos para me nivelar com papagaios da TV Globo e da
revista Veja. Nenhum sistema lógico neste mundo dos viventes transforma a
opinião, que é contrário de conhecimento, em pressuposto válido simplesmente
porque se reivindica respeito à pessoa que profere para validar o absurdo
constante no que se diz. Por fim, quem acredita que o impeachment de Dilma Rousseff não é golpe sequer lerá essa nota: se
é preguiçoso e desonesto para pensar, imagine para ler algo por completo.
[2]
Conceito cunhado na 4ª internacional para designar o campo político que une
setores com preocupações populares, identificadas tanto como campo da esquerda
política quanto com a esquerda revolucionária, essa, essencialmente, marxista
ou anarquista.
[3]
Lincoln Secco descreve com bons detalhes em seu livro A História do PT
(1978-2010).
[4]
Tenho sérias objetivações a essa categoria “lulismo” elaborada por André
Singer. No entanto, ele é o que mais detalhadamente se debruçou para elaborar
um conceito nesse sentido e por isso aqui é usado dessa forma.