Por Vinicius Carrilho*
Na hora de fechar a porta e passar a chave no trinco é inevitável que lembranças surjam daquela que foi nossa casa por 74 anos. Será doído, difícil de acostumar que o caminho para o sagrado teto - que em alguns setores nem existe - não passará mais pela Avenida Pacaembu. Sempre faltará algo quando a concentração antes dos grandes momentos for feitas em outro lugar se não naquele enorme jardim em frente de casa (que alguém deu o nome de Praça Charles Muller)
Durante algum tempo, como é normal na vida de qualquer um, a velha casinha foi deixada em momentos importantes, pois mais familiares cabiam naquele outro espaço que alugávamos de um conhecido aí. Porém, ao fechar a porta é inevitável pensar: quantos momentos marcantes mais poderíamos ter vivido em casa?! Não se pode lamentar o que passou, até porque foram grandes momentos que vivemos lá no outro espaço. Mas, naquelas horas de celebração, faltava sempre alguma coisa. Ali, naquele salão de festas da alta sociedade (que dizem estar em um momento difícil depois que deixamos de ser clientes), faltava aquele ambiente que só nossa favela tinha.
Homenagem em forma de bandeirão: Maloca Querida (foto: Alan Morici/Terra) |
Ali, em casa, form vividos momentos de plena alegria, de inconsolável tristeza, de fidelidade sobrehumana, de revolta irracional. Na boa e velha maloca nós passamos uma vida. De geração em geração, ali foi o abrigo de milhões. Ou melhor: de um bando de loucos.
Foi lá, naquele chão coberto por um tapete daquela cor que dá a mistura de amarelo com azul, que chegamos ao fundo do poço. Aquele carpete foi palco de momentos de tristeza. Do lado, nos sofás de cimento (e em partes mais nobres, de plástico), tantos outros milhares de donos da casa não deixavam sua fé ser abalada. Gritavam para quem quisesse ouvir: eram maloqueiros e sofredores, graças a Deus.
O mesmo palco da derrota também foi o da glória. Aliás, quantas glórias. Daquelas premiadas com troféus no fim - que alguns acham ser a coisa mais importante do mundo -, foram oito. Já as que só quem faz parte desse hospício pode entender foram incontáveis. Muito mais do que as 3.305 vezes que aquela esfera ultrapassou os três postes colocados nas pontas da nossa sala de visitas, ou do que as 965 que, quando aquele incômodo convidado apitava pela última vez, nós sorrimos.
O histórico mosaico da final da Libertadores, em 2012: coração corintiano |
Exatos 74 anos depois de construída, nós vamos fechar a porta de casa pela última vez. Aquele que viveu uma vida aí e que, na verdade, é um locatário, graças a essa casa subiu na vida. Vai trocar o velho e humilde teto na zona oeste por uma mansão construída na zona leste. Mas, apesar de agora rico, ele tem os pés no chão. Nunca vai negar e muito menos esquecer que foi ali, na velha casa, que viveu os melhores momentos da sua vida.
O portão será fechado, o cadeado passado, mas a chave não será devolvida. Ainda somos 30 milhões de donos e, provavelmente ainda esse ano, voltaremos enquanto acabam de construir o novo abrigo.
Ao próximo locatário, que seja feliz e cuide bem do nosso lar, pois mesmo longe, lá na ponta da linha vermelha do metrô, estaremos de olho na região da Estação Clínicas. Ao dono, deixamos um último pedido: não deixe a nossa casa abandonada. Como garantia, prometemos que voltaremos sempre que possível. Mais do que isso, fica nossa palavra que jamais esqueceremos o Pacaembu, a nossa Saudosa Maloca.
** Vinicius Carrilho tem 23 anos, é jornalista,
morador de Osasco e é o cara mais indicado
para escrever sobre a despedida do Pacaembu.