Naquele atípico 13 de novembro de 1991, primavera
paulistana, fazia frio. O placar ainda manual de um mal iluminado Canindé apontava um insosso empate sem gols entre Portuguesa e Internacional de
Limeira, pela segunda rodada da segunda fase do Campeonato Paulista de 1991,
quando, já perto do final do jogo, o time do interior teve um escanteio pela
direita, no lado do gol dos vestiários do Dr. Oswaldo Teixeira Duarte. O tiro
de canto, mal batido, foi interceptado já no primeiro pau pelo capitão do time,
o zagueiro Wladimir. Nilson, o centroavante, ajeitou a bola à altura do grande
círculo central para Dener, que vinha em velocidade.
Como um bólido, partiu com a bola dominada e foi superando
os adversários, um por um: primeiro Ivan, driblado na passada; depois, um
drible da vaca em cima do zagueiro Lica. Denis, lateral-esquerdo, veio babando
para aplicar uma tesoura, mas o arisco camisa 10 luso nem tomou conhecimento,
para, da marca do pênalti, apenas tirar, com um toque sutil do lado direito, o
goleiro, que tentava em vão fechar o ângulo.
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Na mesma noite, todos os telejornais (em 1991 a internet
para uso doméstico nem existia no Brasil) davam destaque ao gol de placa
marcado pelo menino que, menos de um ano antes, encantara (vestindo a mesma
camisa 8 que foi imortalizada por Enéas) o país na histórica conquista da Taça
São Paulo de Futebol Júnior.
Dener era assim: reinventava a lógica em jogos em que
parecia que não aconteceria mais nada, fadados ao esquecimento, como na
antológica arrancada que abre este texto. Ele foi um dos últimos gênios do
futebol brasileiro. “Meia à moda antiga, criava chances de gol a partir do
nada”, constatou o guia do Campeonato Brasileiro de 1993, da revista Placar. “O
melhor do mundo. Morreu antes do reconhecimento”, disse certa vez Edinho,
ex-goleiro do Santos e um dos grandes amigos do genial jogador, com a
autoridade de quem é filho do Rei Pelé. Dos inúmeros sucessores de seu pai,
Dener foi o que mais mereceu a comparação sem que soasse como heresia. Como se
não bastasse, Pepe, que jogou com Pelé na Seleção Brasileira e no Santos e foi
técnico do craque luso no jogo em que o Reizinho do Canindé destruiu o Peixe em
45 minutos de pura classe e raiva, decretou em entrevista ao site
Globoesporte.com quando o desaparecimento do craque completou das décadas: “Foi
um dos cinco melhores atacantes que eu vi, e olha que eu vi Pelé, Eusébio,
Puskas… Dener está nessa turma aí”.
Onde chegaria? Ninguém sabe, a não ser Deus. À espanhola
Líbero, há quase dois anos, falei de Dener na condição de então assessor de
imprensa da Portuguesa e torcedor que viu de perto todos os passos do gênio que
foi esquecido. Sem medo de parecer exagerado, disse ao jornalista Arturo
Lezcano que Dener tinha bola para ser maior que Messi, mas seu temperamento por
certo o impediria de triunfar no duro futebol alemão, destino assinado na noite
anterior da manhã em que seu fado foi cumprido à beira da Lagoa Rodrigo de
Freitas.
Não fosse seu temperamento arredio, talvez estivesse em
Paris com a Seleção Brasileira, que estava concentrada para um amistoso com o
PSG que acabou 0 a 0, como uma espécie de boicote de uma bola enlutada, como se estivesse se
recusando a fazer festa quando queria apenas chorar a perda do seu maior amor.
Hoje, 19 de abril, faz 23 anos que Dener se foi, justamente
a idade que tinha quando o absurdo se consumou. E, mais uma vez, pouco ou nada
foi dito sobre o gênio que, como Enéas, reinou no meio-campo da Portuguesa e só
parou na morte, seu marcador mais desleal, que chegou de surpresa, como um
zagueiro maldoso que lhe atinge por trás sem sequer procurar pela bola. O deus
irônico e farsante que Drummond supôs que regularia o futebol quis levá-los
cedo demais. Se de Garrincha este deus retirou a capacidade de perceber sua
condição de agente divino, a Dener ele negou o tempo. E não há outro Mané. Nem
outro Dener. E as tristezas sempre voltam.
Verdade seja dita, chances para ele não faltaram, mas uma
escapada da concentração, ainda na época de Paulo Roberto Falcão, afastou da
equipe nacional o maior talento que o futebol brasileiro viu no fim do século
passado. Dener não estava nos planos de Parreira para a Copa de 94 por causa
dos inúmeros casos de indisciplina que começou a colecionar ainda na base da
Portuguesa e que o fizeram ir e voltar ao profissional da Lusa incontáveis
vezes. Ou então, sob a orientação de Telê Santana, que o indicou para o São
Paulo campeão de tudo, o menino que cresceu na Vila Ede, Zona Norte da capital
paulista, talvez tivesse outro caminho. Conjecturas. Apenas conjecturas que
nunca serão provadas e que servem apenas para aumentar o mito. Um mito que não
pode ser esquecido, sob pena de se enterrar uma das mais bonitas páginas do
futebol brasileiro.
Quando morreu, naquela estúpida madrugada de 19 de abril de
1994, a caminho de São Januário, Dener estava no banco do carona do Pássaro
Branco, que era como ele chamava o seu Mitsubishi Eclipse, de placa DNR-1010 e
que foi uma de suas exigências para a renovação de mais um dos contratos com a
Lusa. No momento em que Otto Gomes Miranda, amigo que conduzia o carro, colidiu
numa árvore na lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, Dener dormia.
Coube a André Kfouri a definição que mais se aproximou da
perfeição: “Se estivesse acordado, certamente teria driblado a morte”.
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