Marcelo Zambrana/AGIF - Estadão Conteúdo |
*Texto originalmente publicado no Ludopédio
“Às vezes me pergunto: por que colocaram tanta mídia em mim? Eu não pedi isso. Tem situações que passam dos limites. ‘Ah, ele é o novo Pelé’. Cara, ninguém vai ser o Pelé, ele é o rei do futebol. Mas, agora, não tem o que fazer, não dá para pedir que as pessoas não falem da minha vida. Sempre disse que gostaria de ter todos os brasileiros perto de mim, mas entendo cada vez mais que isso não é possível e sempre existirão pessoas para me atacar".
Esta é uma das falas do palmeirense Endrick à revista GQ de abril, que tem o menino na capa, segundo a qual ele é o jogador mais valioso do futebol brasileiro, embora o site especializado na avaliação de valores de mercado Transfermarkt o coloque em segundo, ao lado de Pedro, do Flamengo (avaliados em €20 milhões), atrás do também rubro-negro Gabigol (€22 M).
Essa pressão sobre ele, o precoce idolatrado antes mesmo de ter se formado ídolo, desumaniza e é desumana, é desleal. Ele é um talento, e talentos se impõem, mas está em formação. O ainda menino, que paga pelo preço de ser diferente dos outros e que já foi negociado com o Real Madrid, tinha que ser incorporado aos poucos no time de cima. Um treino, depois uma convocação, uma vez no banco. Sentir o clima, jogar também pelo Sub-20 para seguir o trabalho de potencializar o enorme talento que tem.
Lapidar, desenvolver o potencial, errar, aprender. Mesmo já negociado, e este foi o preço que o talento precoce e a exposição resultante e desmedida cobraram, não poderia ser jogado aos leões como foi. "Vai lá e resolve, menino-gênio!", numa mistura feita com a cobrança feita por quem canta-e-vibra-pelo-alviverde-inteiro e com quem menospreza e faz troça, torcendo pelo fracasso porque gente ruim é assim mesmo. Não é assim que se faz.
Ao saber brincar de jogar à bola melhor que os outros, Endrick perdeu o brinquedo e passou a ter a obrigação de, jogo sim, jogo também, resolver o que adultos formados não resolvem.
Segundo De Rose Jr (1997), praticantes de esportes de competição estão expostos a vários tipos de pressão, internas ou externas. As pressões que vêm de fora estão relacionadas a como seus treinadores, torcedores e companheiros analisam seu desempenho. Internamente, são sobre seus objetivos pessoais, expectativas e de como vivenciam vitórias e derrotas.
Muita gente se esquece, mas ele é gente, não é produto ou máquina, ou uma fruta colhida verde do pé, mas que tem que dar suco do mesmo jeito ou então é para deitar fora. Milton Nascimento e Fernando Brant já nos ensinaram em Bola de Meia, Bola de Gude que, quando o homem fraqueja, é o menino que o irá socorrer. Mas na máquina de moer gente chamada de futebol profissional, o menino não tem vez, a cobrança por resultado não permite lapidar, aprimorar, maturar, desenvolver a tomada de decisão, que é o talento posto em prática da melhor forma. E não se trata de romantismo, é amadurecimento. É etapa.
Explicou Carravetta (2001) que, em jovens atletas, o desenvolvimento de suas capacidades se dá em quatro pilares: físico, tático, técnico e psicológico, que estão ligados às condições inatas ao indivíduo e é aperfeiçoado nas atividades que ele realiza no meio social e cultural, o que exige do atleta que suas funções sejam altamente desenvolvidas, bem como suas habilidades e estado psíquico para que se mantenha no processo de preparação para a competição desportiva. Neste sentido, diz Becker Jr (2007) que quando o início competitivo é precoce e os pilares não estão desenvolvidos adequadamente para a faixa etária da competição, pode haver um desgaste chamado Síndrome da Saturação Desportiva, que é explicada neste artigo publicado pela Universidade do Futebol.
É no período da adolescência, porém, e é aqui em que o Endrick se encontra com seus 16 anos (fará 17 somente no dia 21 de julho), que ocorrem alterações em nível físico, mental e social, em um processo de aquisição e desenvolvimento de competências que o capacitarão para assumir deveres e papéis sociais de um adulto (SAMULSKI, 2002).
Samulski e Chagas (1992) falaram que adolescentes, pela pouca experiência competitiva que têm, tendem a apresentar dificuldades para controlarem suas emoções e suas reações. Da mesma forma, podem ter mais problemas com os efeitos negativos causados pelo estresse que faz parte do processo esportivo e de competição.
A tomada de decisão não é algo que nasce pronta ou vem com o talento. É trabalhada. É memória que se cultiva com erros e acertos. E repetição. E treino. E tempo. No jogo físico, direto, no futebol profissional que condena o que é inútil, e é inútil o que não é rentável, como disse Eduardo Galeano no estupendo Futebol Ao Sol E À Sombra, Endrick perde porque, por mais talentoso que seja, ainda é um menino em desenvolvimento.
E perde porque ainda não tem os atalhos e seus movimentos automatizados. É robótico? É, mas é assim que o futebol atual molda. Livros como "A Bola Não Entra Por Acaso", "Guardiola Confidencial" e "Guardiola - A Evolução" explicam. É científico. Não é achismo. E não se refuta ciência com opinião.
O pior de tudo isso é que o Palmeiras não precisava queimar etapas, mas queimou. E corremos o risco de rifar a saúde mental de um menino porque ele é talentoso e porque o futebol - e tudo - transforma homens e meninos em mera mercadoria.
Referências:
GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. Editora L&PM, Porto Alegre, 2014.
DE ROSE JR, D. Sintomas de “stress” no esporte infanto juvenil. Revista Treinamento Desportivo. Curitiba, v.2, n.3, p.12-20, 1997.
CARRAVETA, E. O jogador de futebol: técnicas, treinamento e rendimento. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2001.
BECKER JR, B. Treinamento psicológico para jovens desportistas.In: GAERTNER, G. Psicologia e ciências do esporte. p.143-164, Curitiba:Juruá, 2007.
FRANCO, Gisela Sartori. Psicologia no Esporte e na Atividade Física. Editora Manole, 2000.
SAMULSKI, D. M. Psicologia do Esporte. 2° ed. São Paulo: Editora Manole, 2002.
SAMULSKI, D. M; CHAGAS, M.H. Ánalise do stresse psíquico na competição em jogadores do futebol de campo das categorias infantil e juvenil (15-18 anos). Revista Brasileira de Ciência e movimento, 1992.
SORIAN, Ferran. A bola não entra por acaso: o que o futebol tem a ensinar à gestão. Lisboa: Gestão Plus, 2010.
PERARNAU, Martí. Guardiola confidencial. Campinas: Editora Grande Área, 2015.
PERARNAU, Martí. Pep Guardiola: a evolução. Campinas: Editora Grande Área, 2017.
Sem comentários:
Enviar um comentário