por Fabio Venturini*
Lá na Cohab Teotônio Vilela as crianças tinham poucos
brinquedos. Alguns carrinhos de plástico, mas no geral tínhamos que fazer
nossas brincadeiras. A principal para os meninos era obviamente o futebol. O
bairro era relativamente novo (estou falando de algo em torno de 1983 e 1984) e
no meio dos prédios havia bastante espaço, vários terrenos disponíveis para
montarmos dois times, dois gols de pedras ou chinelos e rolar a bola.
Ao final da tarde as mães nos chamavam para casa. A penumbra
facilitava a violência adulta. O terror era aumentado pela possibilidade de
sermos levados pela perua do Juizado de Menores. Era uma espécie de polícia
para recolher meninos vadios que ficavam na rua sem ter o que fazer. Uma lição
para os pais que tinham que resgatar suas crias. Quando dava 18h, a chegada da
Kombi azul com um giroflex no teto era suficiente para ver dezenas de meninos
correndo desesperadamente pelas escadas dos prédios. Desconfio que em algum
momento pelos idos de 1985 a viatura surgia apenas para divertir os agentes com
o desespero infantil, não mais para limpar as ruas da vadiagem.
Dentro das áreas cercadas dos prédios os adultos alertavam
que se aquela perua nos levasse seriamos feitos de mulherzinha na Febem junto
com os trombadinhas.
Uma vez um amigo meu questionou a sua mãe porque não podia
brincar na rua à noite e ela respondeu:
- Não se meta com política moleque, você vai se dar mal!
Política e Kombi azul? Mas não é para pegar trombadinhas? No
dia seguinte voltávamos ao futebol.
O jogo
Tínhamos de imediato dois problemas: 1) ter os campos e as
bolas livres, pois os “meninos grandes” já adolescentes ganhavam o espaço na
força e 2) ter pelo menos 12 garotos para jogar com cinco na linha e um no gol.
Normalmente isso ocorria em época de pipa, quando muita gente preferia uma
brincadeira que dependia de muito vento, algo que ainda era sazonal (não
pensávamos em mudança climática). A falta não fazia com que desistíssemos, a
partida rolava mesmo assim, mas usávamos de argumentos e persuasão para
convencer colegas a jogarem bola para empinar pipa depois. Em geral oferecíamos
ao desunido, desgraçado mas bom, de bola a garantia de que não precisaria jogar
no gol.
Felizmente isso era raro. Infelizmente conseguíamos três
times e alguém deveria esperar. Era necessário sortear qual time ficaria do
lado de fora esperando a primeira partida acabar. O método geral era por par ou
ímpar, palitinho, dedos iguais e outros jogos do gênero. Tinha uma forma
interessante chamada 17-21: uma contagem se iniciava e rodava entre um
representante de cada equipe, repetindo em todos até que se contassem as
posições 17 e 21, sendo que o excluído esperava. Até hoje quando jogo na
loteria uso essas dezenas (não tem dado resultado).
Talvez o momento mais tenso e negociado fosse a formação das
equipes. Suponhamos que a partida teria apenas duas equipes. Os dois melhores
ou os dois piores com a bola eram destacados pelo grupo, por indicação
coletiva. Eles eram tão bons ou tão fracos que juntos desequilibrariam a
partida. Depois de um tenso par ou ímpar, iniciavam a formação de seus times
(isso que vocês nascidos depois de 1990 chamam de Fantasy, Manager ou Cartola,
só que real, o jogo acontecia mesmo). Se na vitrine dos elegíveis houvesse
alguém muito melhor do que a média geral, ganhar no par ou ímpar definia a
equipe com uma brincadeira mais divertida e os que terminariam o dia meio
frustrados por tanto perder.
A escolha ocorria, então, um a um, intercaladamente. Cada vez
que um novo membro chegava à equipe, integrava o conclave com o capitão para
opinar na formação do time. Às vezes escolher algum bom goleiro ajudava mais do
que um habilidoso indolente. Quem não tinha tal sorte, precisaria também
realizar um acordo coletivo para revezar quem ficaria naquela posição que
nenhum brasileiro valorizou antes de goleiros começarem a bater falta. Era também
o castigo: se você entregasse a bola para o adversário e tomasse um gol bobo, o
time poderia aplicar a punição de você pegar na vez de outro, para deixar de
ser besta e nunca mais brincar perto da própria meta.
Às vezes um time ficava muito mais forte. Nesse momento, os
dois times paravam a partida e trocavam um muito bom por um muito ruim e,
assim, equilibrar a brincadeira (ganhar fácil de adversário ridículo, como no
Campeonato Espanhol, nunca foi algo legal, acredite). O mais impressionante de
tudo é que não tínhamos arbitragem, técnico ou professor e a coisa andava
naturalmente com base naqueles acordos.
Adorávamos nossos times, a Seleção Brasileira e sonhávamos
em um dia vestir uma camisa de um grande clube nacional ou a amarelinha. Quando
marcávamos, gritávamos “goooooool do Brasil! Ziiiicoooo!”. Ninguém se importava
por ele ser do Flamengo. Todos meninos tinham camisetas amarelas para imaginar
que estavam na seleção. No sorteio escolhíamos jogar com ou sem camisa, o lado
do campo (ficar na descida para atacar no primeiro ou segundo tempo),
combinávamos em quantos gols acabava cada partida. Ninguém interferia, somente
quando alguém mais forte acabava com a brincadeira pela força.
Quase 18h, subindo as escadas com medo novamente do Juizado
de Menores, em casa ouvíamos que gente do nosso lugar não podia fazer política
durante o telejornal que passava entre uma novela e outra. Gostávamos das
novelas.
Pode parecer nostalgia, mas o fim de uma ditadura pareceu
doce aos meus olhos de criança.
Um dia crescemos. Caras se pintaram, os clarinhos fizeram
faculdade e se mudaram, os escurinhos ficaram presos no bairro. Os terrenos
foram invadidos pela especulação imobiliária e nossos primos mais novos não
ficaram sem ter onde jogar. O lugar em que batíamos bola virou prédio, igreja,
delegacia, qualquer coisa, menos terra batida com dois gols de pedras ou
chinelos.
Crianças foram jogar em quadras de condomínios e escolinhas
de grama sintética. Lá o professor escolhe os times e os pais querem opinar na
escalação porque pagam mensalidade. Nos condomínios é que se decidiam as regras
do jogo das crianças nas reuniões de condôminos, até para evitar que os adultos
não se entendam mais.
Quando vejo as camisas amarelas da seleção brasileira no
século XXI minha cabeça sofre, não entende, não aceita, resiste em acreditar. O
manto que eu vestia era orgulho por não ter uma regulação como a do condomínio,
um adulto organizando nosso mundo e tecidos especiais com numeração
customizada. O futebol era nosso momento de liberdade na determinação imperativa
do nosso lugar social espacialmente delimitado por uma perua azul. Sequer
usávamos camisa dessa cor no futebol porque ela nos perseguia, seja com o
juizado, a Itália de Paolo Rossi ou a França de Platini. Cor agourenta!
A camisa amarela era a melhor, a mais bonita, a mais
orgulhosa. Tudo isso lá no campinho de terra batida.
*Fabio Venturini é jornalista
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