sábado, 18 de maio de 2019

A reconquista


Quando Bruno Lage assumiu o comando do Benfica, a diferença para o Porto era de sete pontos, e ainda havia Sporting e Braga a separá-los na tábua de classificação. Para complicar, os do norte eram os atuais campeões, lideravam seu grupo na Liga dos Campeões, prova na qual o Benfica caiu com estrondo na primeira fase, e estavam a dois jogos de baterem o recorde nacional de vitórias consecutivas (19), do próprio Benfica. Como se não bastasse, os cinco adversários mais bem colocados na tabela – Braga, Moreirense, Porto, Sporting e Vitória de Guimarães – seriam enfrentados em seus redutos na segunda volta, que começaria três rodadas depois.
Não era, pois, uma missão das mais fáceis à turma encarnada a reconquista do título que escapou na temporada que seria a do inédito penta. Quase uma utopia, inclusive para mim. Aí veio Bruno Lage e as ideias arejadas de quem passou um bom tempo a respirar os ares do futebol inglês no Swansea, de Carlos Cavalhal.

A primeira missão foi recuperar jogadores desmoralizados no plantel, como Gabriel e Samaris, e fazer subir Ferro, Florentino e Jota dos bês, de onde já havia saído o novo titular João Felix, ao passo que Sporting e Porto iam às compras.

Só quem tem na alma a chama imensa acreditaria que, quatro meses e meio depois, um empate bastaria para o 37 e apenas um gol seria preciso para chegar aos 100 na prova, algo que aconteceu pela última vez pelos lados de Cosme Damião quando o Pantera Negra ainda rugia na Europa. Claro que a inconstância de Braga e Sporting, mais os quatro tropeços do Porto, ajudaram, mas a marca de 18 vitórias e 72 gols em 19 partidas não deixam dúvidas sobre quem foi o grande time da época.

Para além de recuperar mais valias no elenco e abrir espaço para novas, também era claro que nomes como Rafa e Pizzi precisavam voltar a brilhar. E Bruno Lage assim o fez ao mudar o 4-3-3 habitual para o 4-4-2, que fez seus comandados gostarem de ter a bola mais que qualquer adversário. Salvio se machucou, Cervi, Krovinovic e Zivkovic perderam espaço e Pizzi, que era quase um terceiro trinco, saiu do meio e virou o extremo, mais próximo dos atacantes a ponto de ser o maor passador para gols da Europa. No corredor central que era do General, Rafa finalmente fez sua grande temporada desde que chegou do Braga após ajudar Portugal a conquistar a Europa em gramados franceses em 2016. Promover o brasileiro Gabriel a organizador de toda a malta a partir do círculo central foi a grande mudança tática de um time que deixou de pensar pouco quando havia a bola ao pé ainda na intermediária, marca que vinha desde Jorge Jesus, a uma equipe que bastava para si ter a bola para buscar oportunidades.

Com Jonas às voltas com problemas físicos, coube ao miúdo João Felix fazer Portugal render-se ao novo prodígio do país. 19 anos, frieza de veterano e atributos de craque que precisam ser lapidados, como a finalização e a tomada de decisão, mas, como diria Rui Vitória, o talento lá está. Como também esteve nos garotos que tomaram conta do onze com a temporada de afirmação do já internacional Ruben Dias e de duas joias que logo pedirão passagem na Seleção e nas grandes ligas europeias, Ferro e Florentino, que, ao lado do “novo menino bonito da Luz”, formaram a trinca de principais revelações da competição.

Se Luiz Felipe Vieira errou na formação do elenco que perdeu o penta, acertou em cheio quando resolveu que era a vez dos miúdos e que Jorge Jesus não era o nome ideal para tocar o projeto rendendo Rui Vitória, mas sim o Bruno Lage que conhecia bem o que florecia no Seixal, terreno que também ajudou a fertilizar. O resultado aí está: a melhor campanha do returno da história do futebol nacional, 103 gols marcados e um futebol vistoso em quase todo o tempo, algo que raramente aconteceu no histórico, mas enfadonho, tetracampeonato português, quando a época de sofrimento contra os grandes era recompensada com o trofeú erguido ao fim. Desta vez, ser campeão foi apenas a consequência de um trabalho fantástico de um time que dá gosto aos pés de seus jogadores e aos olhos de toda a malta que veste vermelho com a águia ao peito em Portugal e no mundo.

Meu pai partiu uma semana depois de o Benfica perder em casa para o Porto, praticamente ficando de fora da briga pelo título na temporada passada. Quando o jogo com o Santa Clara acabou, pela primeira vez eu comemorei um troféu sem tê-lo ao lado, mas ainda assim eu tive a certeza de que ele estava a dizer ao pé de mim o mesmo que falou quando fomos campeões da Europa em 2016: "Somos campões, caralho!". Sim, meu pai, somos campeões.

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