DA DOR AO RISO: tratar a tragédia como chacota só piorou o futebol brasileiro (Imagem: Jamie McDonald/Getty Images) |
O maior vexame da história do esporte completa 10 anos hoje, 8 de julho. A efeméride, data redonda, ganhou mais força com a precoce eliminação da seleção brasileira na Copa América disputada nos Estados Unidos, a nova casa do futebol sulamericano – e brasileiro, ao menos quando se trata da seleção, mas vamos a isto mais adiante.
Gentes muito melhores que eu, como o comentarista Carlos Eduardo Mansur, do Grupo Globo, não gostam dos adjetivos, que (des) qualificam o episódio como vergonha e vexame. Eu considero que servem à perfeição para falar da hecatombe que acometeu a camisa mais pesada do esporte mais popular do mundo, ainda mais jogando em casa. Logo, o termo cabe.
Se o 7 a 1 serviu para algo, foi para redimir a geração que foi empurrada para a derrota pelo oba-oba de políticos, que não tinham intenções das mais puras – nunca as têm – e da imprensa no jogo que decidiu a Copa do Mundo de 1950. Passados 10 anos do atropelamento alemão, que nem cumpria uma campanha tão brilhante assim naquele mundial, o futebol brasileiro regrediu. Mesmo os incrementos financeiros resultantes do aumento da média de público podem ser considerados como avanços sem o senão dos efeitos da gentrificação, do afastamento do povo pobre e preto das arquibancadas.
A seleção brasileira está mais afastada do torcedor do que há 10 anos, quando as piadas pelo Mineiraço já surgiam no intervalo, no colo do 5 a 0 que ainda aumentaria para o sete-a-um que virou verbete informal para as agruras do cotidiano. A capacidade de rir da própria desgraça é tão brasileira quanto quem nasce, vive e morre no país. Por um lado, ajuda a aliviar as mazelas da vida de quem sofre e não tem muitas perspectivas. Por outro, porém, ao aceitar as agruras em vez de combatê-las, ajudamos a perpetuar este sistema que insiste em normalizar o inaceitável, seja qual for o setor.
Pouco de concreto foi feito para corrigir a rota do futebol nacional. No ano seguinte, a CBF promoveu uma reunião com ex-técnicos da Seleção para buscar respostas. Para participar do encontro, que reuniu o então treinador Dunga e Parreira, Zagallo, Carlos Alberto Silva, Paulo Roberto Falcão, Sebastião Lazaroni, Candinho e Ernesto Paulo, bastava ter sido treinador da seleção e estar vivo na ocasião. Mano Menezes, Felipão, Vanderlei Luxemburgo e Leão foram convidados, mas não participaram de um evento que resultou num sem número de chavões, discursos vazios e constatações óbvias.
No mesmo ano, a entidade criou seu curso de treinadores, com o nome pomposo de CBF Academy. No entanto, os efeitos práticos são indetectáveis. Dez anos depois, o Campeonato Brasileiro foi iniciado com metade dos clubes tendo treinadores estrangeiros, boa parte deles vindos de Portugal e da Argentina. O curso de treinadores da Argentina, o AFTA Campus Virtual, teve treinadores portugueses como instrutores, tanto que é válido na Europa, e essa limitação impede um intercâmbio que favoreceria o desenvolvimento do futebol nacional. Não se trata de copiar os métodos, e sim de entender os conceitos e utilizar o que pode ajudar, dentro das bases do futebol nacional, a desenvolvê-lo.
Ao cabo, passamos por uma profunda crise de identidade, sem uma cultura tática estabelecida e tentando emular os sistemas da moda na Europa, mas não entendemos ou respeitamos os processos necessários para que os tais sistemas sejam compreendidos. Hoje, a busca é pela posse de bola, pela transição rápida, pelo jogo que transforma os meias em meros passadores de bola e o futebol posicional. Técnicos seguem promovendo sistemas táticos que tentam evitar a derrota para protegerem seus empregos. Programas de debate barulhentos, cujo objetivo maior é criar engajamento por meio de opiniões enfáticas, polêmicas e rasas, buscam respostas fáceis para segurar a audiência de torcedores que preferem acompanhar canais segmentados ou influenciadores sem o menor compromisso com a informação. Atende-se assim aqueles que não querem contraditório, mas querem endosso.
Respostas fáceis. Muitas delas voltaram com força com a eliminação para o Uruguai. E tome falar de seres hipotéticos, como o amor à camisa, a falta que o Neymar faz, a falta de protagonistas, a seleção de 2006. Obviamente, o comportamento dos jogadores, ralhando com a torcida a cada gol contra a poderosa esquadra paraguaia, o bate-boca público de Vini Jr a um jornalista que fez críticas técnicas ao seu desempenho no mesmo jogo, ou a desastrosa entrevista de Andreas Pereira, sugerindo que jogar na Premier League seja o suficiente até para causar inveja aos jogadores do Uruguai, histórico rival e orgulhoso de sua própria e gigante história, é contraproducente, não ajuda e ainda atrapalha. Isso vindo de um jogador que no Flamengo era reserva de um uruguaio, que nem é titular na Celeste.
Este ambiente forjado à base do "nós contra eles" pode ter dado certo com Felipão em 2002, mas foi uma completa tragédia com Dunga. O capitão Danilo foi ao pé da torcida cobrar apoio após um medonho 0 a 0 com a Costa Rica; Endrick deu a entender que alguns ali faziam um favor ao defender a seleção quando poderiam estar de férias. Endrick precisava dar a entrevista após a eliminação? Passou pela cabeça de Andreas que suas declarações seriam combustível para um adversário que, além de estar em um melhor momento, não precisa de um estímulo extra? Neste sentido, há jogadores uruguaios que o torcedor brasileiro gostaria de ver usando a camisa amarela. É sinal de que falta, além de autocrítica, gestão.
Ainda assim, é só mais um aspecto nessa profunda crise, e não dá para dissociar do 7 a 1. A primeira resposta fácil foi o retorno de Dunga, que já havia sido escolhido para o ciclo seguinte a 2006 porque representava entrega, disciplina e identificação com a camisa da seleção. Não funcionou porque o problema certamente não era esse. Veio Tite e o Brasil saiu do nada para o muito bom, vencendo todos os jogos de uma eliminatória tida como “a mais difícil de todos os tempos”. Foi um suspiro de modernidade e eficiência, mas que fez ressurgir o ufanismo tão nosso de cada dia que causa estragos desde 1950.
Pela melhora imediata apresentada logo à chegada de Tite e sua comissão técnica, seu trabalho passou a ser incensado por quem deveria manter uma distância segura para evitar a contaminação, mas a cobertura da seleção brasileira, mais do que qualquer outra no mundo – e não por acaso –, é acompanhada pelo exagero para o bem ou para o mal, e não havia a contestação necessária para não vender a ilusão de favoritismo absoluto.
Deve-se admitir que Tite, no comando da seleção, fez com que houvesse um trabalho diário, com método, processos e profissionalismo, mas não o suficiente para que o Brasil fosse além das quartas-de-final da Copas de 2018 e 2022. Pecado dos maiores, também não foi o bastante para delimitar ao gramado a influência do melhor jogador da geração, a ponto de aceitar bovinamente o acesso dos “parças” e que seu pai, eminência parda da seleção brasileira e que sequer deveria estar próximo, corroesse o cronograma hierárquico necessário a qualquer organização.
Outro ponto, já abordado aqui, é o afastamento do torcedor. E são diversos os vértices a ligar as arestas dessa figura cheia de faces: Pegando o recorte específico abordado aqui, desde o 7 a 1, o Brasil jogou 49 amistosos. Destes, somente cinco foram jogados no país. Em termos de comparação, o Brasil jogou 11 vezes nos Estados Unidos e seis na Inglaterra. Nem quando havia a possibilidade de buscar uma reaproximação, e a melhor oportunidade se ofereceu antes da Copa de 2018. O único amistoso realizado naquele ano antes do Mundial ocorreu em março. E não foi no Brasil, foi na Rússia. Jogos oficiais são proibitivos pelo preço. O ingresso mais barato do último jogo de eliminatórias disputado em terras brasileiras custou R$ 200,00 (a meia entrada). O preço cheio variou entre R$ 400 e R$ 600.
O calendário também não ajuda, com a imposição das 38 rodadas do Campeonato Brasileiro e a necessidade de proteger os campeonatos estaduais, que garantem a subsistência de inúmeros clubes, postos de trabalho e setores da economia local. Queiram ou não os defensores do planejamento hipotético dos maiores clubes, o futebol não se restringe aos 13 que criaram a Copa União, em 1987, nem os outros estão fadados a serem seus entrepostos. A resposta? Não sei, mas defenestrar os clubes menos ricos ou menores jamais será o caminho.
Um dos impactos é a impossibilidade de parar os campeonatos para que seleção possa atuar. E nem adianta falar que no dia dos jogos da seleção não há jogos, já que eles acontecem no dia seguinte. Como acomodar isso? Haverá quem possa dar as respostas. Por aqui, fazemos as perguntas e fomentamos o debate. O jornalista Júlio Gomes sugeriu, em sua coluna do UOL, inverter estaduais e o Brasileiro para coexistirem de maneira mais inteligente e poder haver uma parada de verdade para que os jogos da seleção não desfalquem os clubes e causem a revolta de torcedores e jornalistas mais figadais, digamos assim. Eu considero a ideia do Júlio muito boa, portanto, viável. A minha seria mandar às favas os pontos corridos. Não acontecerá.
Mas voltemos à eliminação na Copa América. Ela é o resultado de todas as barbeiragens cometidas pela CBF, sobretudo pelo seu presidente, Ednaldo Rodrigues. Não a eliminação em si, mas a forma, que até foi previsível. A queda nas quartas de final, no Catar, foi encarada como fracasso e, em vez de esperar pelo rescaldo e analisar o que foi feito de bom e de mau, que é o mínino que se espera quando existe algum direcionamento, tudo o que foi trabalhado até ali foi jogado fora. O Brasil ficou sem supervisor e diretor de seleções e todas as decisões foram tomadas monocraticamente por Rodrigues, que não é lá um sujeito a quem se possa atribuir todas as qualidades de um grande gestor. Se fosse, não compraria a ideia, praticamente platônica, de que Carlo Ancelotti ocuparia o cargo de treinador da seleção. Mais que isso, caso Carlo realmente tivesse assinado o contrato, a transição jamais poderia ser feita por um treinador com características tão diferentes.
Até Ednaldo sabe disso, tanto que vendeu a ideia de que Fernando Diniz e Carlo Ancelotti tinham conceitos parecidos. O problema é que claramente não são. De toda forma, qualquer que fosse o resultado desse “espera aí que eu vou depois”, o treinador pegaria um trabalho a partir do zero, que é o que aconteceu com Dorival Júnior. A Copa América, portanto, não poderia ser o ponto de análise do trabalho, e sim o de partida, e o resultado é o que menos deveria importar.
No entanto, como não existem verdades absolutas ou garantias de vitórias no futebol, não é possível notar que o período entre a apresentação dos convocados e a despedida do torneio não trouxe evolução alguma. O que pudemos perceber foi o contrário: a incapacidade de sair jogando – o jornalista Leonardo Bertozzi trouxe, no Linha de Passe seguinte ao jogo com o Uruguai, um dado insuspeito: os jogadores que mais tocaram na bola no primeiro tempo foram o zagueiro Marquinhos e o goleiro Alisson, além de que apenas um passe foi concretizado no último terço do campo defensivo uruguaio – e a falta de rotinas que pudessem potencializar o talento dos principais jogadores, que, sim, existem e atuam destacadamente em alguns dos principais clubes do mundo.
Este texto não tem a intenção de dar as repostas e interditar o debate. Pelo contrário, é preciso analisar e tentar entender o que levou o futebol brasileiro para além do fundo do poço, que, imaginava-se, era perder de 7 a 1 em casa numa semifinal de Copa do Mundo.
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