LENDAS DAS ÁREAS Estes senhores dispensam legendas, mas é preciso que um deles entenda seus limites (Hassan Ammar) |
“O único erro foi a bola não ter entrado”. Assim, Roberto Martinez definiu a prestação de Portugal nas meias-finais do Euro-2024. Também disse que não se deve avaliar a participação portuguesa por três jogos. Um a mais que a metade dos cinco, sem contarmos a hora adicional em forma de prolongamentos.
Foram 364 minutos sem meter a bola, este ser que ganha vontades quando as nossas intenções não se concretizam, nas balizas contrárias. E há muitos nomes aqui a responderem por isso: Mamardashvili, Oblak, Maignan, Martinez, Ronaldo.
O que Martinez disse é que a bola não quis entrar. Noutro sentido, o ótimo Francisco Martins, jornalista do Expresso, sacou no podcast No Princípio era a Bola a frase que melhor resume e responde: “A bola não quis entrar e Cristiano Ronaldo não quis sair”. Reduzindo a este jogo em específico, foi o que faltou a Portugal.
Se há algo sobre o qual ninguém poderá apontar o dedo a Martinez é pela sua capacidade de preparar a seleção para os jogos. Exceto pela abordagem desastrosa – como todo o resto naquele dia – para a partida contra a Geórgia, o selecionador português sempre apresentou a melhor formação possível para os contextos que se avizinhavam.
Contra a poderosa França, de prestações à medida em todos os jogos até aqui, mas com claras hipóteses de crescer de acordo com a exigência apresentada – e Portugal exigiu o melhor que os gauleses poderiam dar –, Martinez apostou no seu onze base, mas com alguma diferença nas funções, diferenças essas há muito solicitadas.
A mais flagrante e necessária: Bernardo Silva foi descolado da linha lateral e buscou associações com João Cancelo, dividido entre apoiar o ataque – e fê-lo muito bem – segurar Mbappé, figura opaca em campo graças ao trabalho defensivo do lateral português e aos incômodos proporcionados pela máscara que trazia colada à cara. Do outro lado, Nuno Mendes manteve a tendência de crescimento e formou uma dupla diabólica com Rafael Leão, ligeiramente abaixo porque ainda não dá a melhor continuação às jogadas quando vence a marcação.
Esses elementos, somados a João Palhinha e Vitinha, fizeram com que o melhor de Portugal fosse melhor que o melhor da França, capaz de bascular o jogo de extremo a extremo com seu espetacular trio de médios formado por Camavinga, Tchouaméni e Kanté. Ainda assim, foi um duelo equilibrado e que, caísse para o lado que fosse nos 90 e tantos minutos, não haveria voz lúcida em Hamburgo, Paris, Lisboa ou em Diadema a sugerir uma injustiça.
Os pontos de desequilíbrio estavam justamente nas outras extremidades do campo, onde Rúben Dias e Pepe – este é um caso à parte e já voltaremos a isto – engoliam quem quer que surgisse por ali e Upamecano e Saliba sobravam para neutralizar um destoante Cristiano Ronaldo.
E aqui talvez esteja a resposta para o desempenho abaixo do possível de figuras de proa da equipa nacional como Bruno Fernandes, posicionado mais perto da área para compensar a ocupação de espaços que o capitão já não pode dar. E Cristiano deu pouco na maior parte da prova, sobretudo quando não foi poupado quando deveria.
Já lá voltaremos também.
A França é uma equipa que, sob Deschamps, pode ser classificada como a seleção mais cínica do mundo. Parece adormecida, adepta da lei do mínimo esforço, somente o necessário. Aí, quando o oponente abaixa os braços, vem o golpe. Suas capacidades acabam por moldar o adversário, e com Portugal não foi diferente. A primeira parte foi de estudos de parte a parte, poucas excursões ao coração da área adversária mais pela superioridade dos defensores do que pela vontade dos avançados, tanto que, remates, foram poucos concretizados.
O senso de urgência adquirido nos balneários após passadas a limpo as impressões trazidas do relvado trouxe duas equipes acutilantes, determinadas a evitar o drama da prorrogação e com a faca nos dentes. Palhinha travava Mbappé, Camavinga esteve a centímetros de fazer a festa gaulesa e Kolo Muani reviu Dibu Matinez na pele de Rúben Dias, dono e senhor de uma intervenção daquelas que valem por um gol a socorrer um Diogo Costa, cujos milagres não seriam suficientes naquele instante.
Do outro lado, Maignan esteve magnânimo para aplacar Leão. Depois, para fazer a defesa da noite quando Bruno Fernandes apareceu livre, em movimento a rasgar e recebendo passe açucarado tal uma bola de Berlim, que era onde Portugal queria estar no dia 14, mas o braço esticado do guardião francês não permitiu. Depois contou com a sorte para ver o chute colocado de João Cancelo ter outro destino, que não a vértice contrária.
A essa altura, Dembelé já estava em campo, rendendo um inoperante Griezmann. A resposta dada por Martinez foi lançar Francisco Conceição e Nelson Semedo. Deschamps ainda lançaria folego novo e pernas frescas com Marcus Thuram e Barcola. Na mesma altura, já no tempo-extra, João Félix voltaria a ser utilizado após inexplicavelmente fiar de fora de todas as opções contra a Eslovênia.
Se és um atacante e vestes a camisola da França, terás sido devorado por Pepe, possivelmente na melhor atuação desde que estreou pela Selecção Nacional. Aos 41 anos, que só foram notados naquele lance já no prolongamento contra os georgianos, o melhor zagueiro português da história – e um dos melhores do século em qualquer que seja a lista mundial que for feita se esta for minimamente séria – deu uma aula de posicionamento, leitura de jogo e vigor. Limpo, na bola, sempre na bola.
Os minutos se arrastaram até a necessidade de haver outros 30, que começaram com Francisco Conceição a levar de vencida toda a gente francesa que estivesse à sua frente antes de oferecer o gol a Cristiano Ronaldo. Aquele que fez cinco golos na última Euro não enviaria a bola à lua, como fez este, a versão pré-reforma que não venceu o tempo.
O minuto além do 120 talvez tenha feito a pergunta a ser respondida: precisávamos do drama do prolongamento frente à Eslovênia. Em Hamburgo, este minuto teve dois ataques, de parte a parte, em que ficou nítido que o cansaço impediu que Portugal marcasse quando Nuno Mendes escolheu o pé menos usual para dar seguimento ao passe de Bernardo Silva. Thuram, na resposta, teve a porta fechada por Pepe, o melhor de todos os que estavam em campo. Pouco antes, Félix e Barcola tiveram suas hipóteses, mas as malhas que receberam a bola foram as do lado externo.
A esperança residiu ao fim no milagreiro da fase anterior, São Diogo, mas nem com asas ele pegaria as cobranças perfeitas de Dembelé, Fofana, Koundé, Barcola e Theo Hernandez. Chamado a abrir a série portuguesa, Cristiano não tremeu. Bernado, como havia sido nos oitavas, também foi perfeito, mas João Félix, que substituiu o outro batedor, Bruno Fernandes, acabou acertando o poste. A cobrança sem reparos de Nuno Mendes serviu somente para manter a fé dos portugueses por alguns segundos.
Se a França fez por onde passar, Portugal talvez tenha feito mais, mas o futebol é isto. Como é perceber o que foi feito de mau, reforçar o que foi feito de bom e, pelo amor de Deus, resolver o que fazer com o maior jogador português de sempre, que precisa ser convencido de que não há mais nada a provar.
O melhor jogo foi o último e há ótimos indicadores para o futuro, mas é preciso ter coragem.
***
As avaliações a seguir têm um certo exagero, galhofa e quase nenhuma base técnica. É favor não levar tão a sério.
Diogo Costa: nem se voasse pegaria as cobranças francesas. Milagres não são feitos todos os dias;
João Cancelo: se a Eurocopa serviu para algo, foi para recuperar o futebol de quem sequer sabe onde jogará na próxima temporada (Nelson Semedo: outro a recuperar a dignidade na relva alemã. Se quiseres, a lateral de um certo time vermelho da Segunda Circular estará à sua espera);
Rúben Dias: o bloqueio ao chute do Kolo Muani teria sido aplaudido por Dibu Martinez;
Pepe: vai voltar para Portugal com a mala carregada de atacantes de 10 a 20 anos mais jovens e incapazes de superá-lo. Um monumento de jogador;
Nuno Mendes: a bola do jogo calhou-lhe ao pé errado. Melhor a cada jogo. 2026 estará à porta;
João Palhinha: olhem o mapa mundi e reparem: a superfície é coberta por 60 e tal por cento de água. O resto é coberto pelo João Palhinha (Rúben Neves: era bonito seus passes teleguiados serem vistos mais vezes na Alemanha);
Vitinha: o único azar é pisar os mesmos lugares de Bruno Fernandes (Matheus Nunes: perdeste suas férias para isso?);
Bruno Fernandes: poderia ter baixado mais vezes para organizar o jogo desde trás, onde há mais espaços. Nas duas vezes em que conseguiu, Portugal quase marcou. E ter saído é uma das tolices que ficaram na conta do mister (Francisco Conceição: seu pai certamente ficou mais orgulhoso pelo que viu do que o pai do Marcus Thuram. O problema é que eles saíram felizes, nós não);
Bernardo Silva: juro que não entendo que caral** faz com que jogues como extremo. Entra técnico, sai técnico, e não há um corno pra te deixar jogar solto. Fez isso contra a França e, obviamente, Portugal cresceu;
Rafael Leão: Koundé deveria passar por terapia para se livrar dos traumas causados pelos avanços de Rafael Leão. Nós todos também teremos que passar por terapia para esquecer que Rafael Leão ganha todas as jogadas e não acontece nada depois disso, a não ser uma ou outra ecrã quebrada por quem esperava pelo golo (João Félix: merecias mais respeito e minutos, mas nunca no lugar de Rafael Leão);
Cristiano Ronaldo: por quê, Cristiano?
Roberto Martinez: havia muito potencial, flexibilidade tática, jogadores acima da média em todas as posições. Mas havia um treinador que dispôs de seis amistosos - mais um jogo para cumprir tabela - para preparar um time que ficou amarrado às vontades de seu capitão, que começou bem, mas deitou tudo ao chão conforme seu golo não saiu. O que dói é que poderia ser melhor. Uma pena, Roberto, mas simpatia não basta nos grandes palcos.
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