*por Fabio Venturini
Quando o jogo de futebol é visto no estádio, a impressão de
tudo o que ocorre em campo é bruscamente distinta da que se tem quando
assistido em casa, mediada por uma transmissão televisiva. No campo se sente a
temperatura do jogo, percebe-se o comportamento de quem não aparece na tela e
até as nuances da relação entre a arbitragem e os demais personagens.
A pior sensação para alguém que sai do estádio é se deparar
com esta mediação pós-jogo absolutamente voltada a criar realidades paralelas
ou desviar a atenção. Quando a arbitragem obviamente decidiu os resultados de
uma partida ou de um campeonato, os esforços para isentá-la ou desviar a
atenção são grotescos.
O conceito pronto é: quem perde sempre reclama e isto é
chororô.
Nenhum comentário posterior altera resultado de partida. Porém
a cobertura, em qualquer área, molda comportamento e alimenta ignorância.
Se alguém se sente prejudicado no futebol é tolhido do
direito à contestação (lusitanos e botafoguenses entendem bem disso),
tornando-se o bobo da vida real pela virtualidade criada. Tal estrago é feito
especialmente pelo jornalismo esportivo brasileiro, ou pelo menos o que se
chama com esse nome por aqui no que é na realidade marketing de entretenimento
voltado ao desporto.
Quando arbitrar é jogar
Juiz de futebol erra como todo ser humano, mas ganha bem
para não errar. Um árbitro de campeonato de primeira divisão nos centros mais ricos
do Brasil junta vencimentos mensais oriundos do apito maiores do que os salários
e direitos de imagem de 90% dos jogadores de todo o País do Futebol. É dever se
preparar física e tecnicamente. E eles se preparam.
Nos maiores e melhores campeonatos europeus, o inglês e o
alemão, os juízes não são profissionalizados e também erram. O tema é tratado
como variável do jogo pela imprensa (de sensacionalismo os britânicos
conhecem). Atletas e comissão técnica não reclamam.
Então o que gera o “chororô” dos perdedores daqui?
A diferença está na natureza do erro e no processo em que
ele ocorre. O juiz de futebol deste lado do Equador é orientado a jogar o jogo,
sem se limitar à aplicação de regras. Tal prática se escancara nas falas dos
ex-árbitros e hoje comentaristas, errantes contumazes de outrora, que afirmam
sem o menor constrangimento que o juiz tem que controlar a partida adotando critérios
variáveis para marcação de faltas e aplicação de cartões.
Aberto está, portanto, o portal da manipulação. Como juiz de
futebol, uma espécie de poder executivo, polícia ostensiva e judiciário,
concentrados em uma única pessoa, o cidadão pode usar critérios diferentes em
lances semelhantes.
Pode ser leniente com o retardo do jogo no primeiro tempo e
aplicar cartão somente para não pendurados aos 40 do segundo. Pode marcar
faltas inexistentes e parar a partida quando uma equipe pressiona a outra.
Escolhe-se o momento de usar ou não lei da vantagem. Pode deixar de punir uma
agressão com cartão vermelho porque está no começo do espetáculo ou expulsar algum
atleta mais visado em lance bobo para não perder o controle. Pode tudo o que o próprio
critério mandar para dar emoção à partida ou qualquer outra coisa que o valha. É
o 23º jogador.
Em nenhum campeonato nacional transparente ou nas
competições internacionais mais badaladas voltam-se cobranças de pênaltis
porque o goleiro adiantou (nem mesmo na Copa do Mundo ou na UEFA Champions
League). O motivo é simples: a regra diz que o arqueiro deve estar com os dois
pés sobre a linha do gol na hora da cobrança, mas nenhum guardametas do planeta
os mantém lá onde deveriam estar. Se forem adiantadas de 30 centímetros ou
dois metros, ambas são infrações à regra. Sendo impossível cumprir, a isenção é
universal.
No Brasil adotou-se a regra da tolerância a critério do
árbitro. Novamente ele, o homem do apito, faz mais uma jogada e decide quem
merece uma segunda chance. Numa partida pode ser um passão, na outra um
passinho, em outra somente se forem seis passos após nove cobranças com
goleiros adiantando pelo menos um metro... O comentarista valida, o espectador
distraído ou propositadamente tendencioso concorda.
Conveniência
Não existe padrão ou cumprimento claro da regra na
arbitragem brasileira, até porque, ao contrário do que se diz na TV, a regra
não é tão clara assim se estiver condicionada à cabeça de uma pessoa. Tudo está
na conta da interpretação do árbitro, mesmo em lances não interpretativos. Pode
isso Arnaldo? No Brasil pode. Destroem-se todas as formas de identificação se
os erros são gerados por má fé ou incompetência. Nenhuma delas é combatida.
Reclamação é chororô. A resposta é um irônico blá blá blá.
Seria ótimo se ficasse tudo no mero âmbito futebolístico,
mas o mesmo critério alimentado pela ignorância e conveniência de quem tem o alcance
da opinião pública vai ser usado para debater pena de morte, maioridade penal,
verbas para educação e isenção de IPI.
Nas ligas desportivas em que o desempenho dos atletas define
o resultado, erros não são tolerados, motivo pelo qual há um trabalho imenso
para evitá-los. Talvez o melhor exemplo seja a National Football League, aquele
campeonato dos Estados Unidos em que se joga um esporte também chamado futebol,
mas com as mãos e uma bola oval.
Na NFL os árbitros são profissionalizados, com obrigação de
conhecer e estudar o espesso livro de regras absolutamente claras e objetivas.
Têm ajuda de vídeo para analisar lances dos quais não têm certeza da marcação e
jamais tomam uma decisão sozinhos. A falibilidade humana é atenuada dentro do
jogo para não influenciar resultados de partidas ou de campeonatos.
Este nível de profissionalização eleva salários. Tanto que
no início da temporada de 2012 da NFL houve uma greve dos juízes por melhores rendimentos
diante do aumento das entradas da liga, girando na casa dos bilhões de dólares.
A paralisação fez com que a direção da NFL escalasse amadores para arbitrar as
partidas.
Os muitos erros cometidos pelos substitutos despreparados
permitiram que jogadores encenassem lances e algumas partidas terminassem
melhor do que o merecido desportivamente e dentro das regras para times da casa
ou de mais badalação. A credibilidade da liga foi abalada. A incompetência
cheia de boas intenções deu lugar novamente à coibição do erro processual e os
milionários salários pedidos pelos juízes profissionais foram pagos para não
lesar a imagem da liga e a veracidade de seus resultados.
No futebol da bola redonda a credibilidade é o que menos
preocupa, tudo fica como está. Erros se justificam natural e cinicamente com a
incompetência, mesmo quando há má fé. Os meios de comunicação de rede nacional
usam concessão pública para institucionalizar o jeitinho ou a desonestidade. O
marketing de entretenimento esportivo travestido pela linguagem jornalística valida
e o expectador com preguiça mental aplaude.
Como incansavelmente dizia o Sócrates, ora em sua excelente
coluna na Carta Capital, ora no Cartão Verde, da TV Cultura, a direção do
futebol não muda as regras e não organiza decentemente a arbitragem para poder
escolher resultados e vencedores. Se o Doutor, provavelmente o maior jogador da
história do Corinthians e que conhece o futebol por dentro, dizia categoricamente
o que dizia, quem sou eu para lançar blá-blá-blás sobre chororôs quando um jogo
e um campeonato são decididos pelo apitador?
*Fabio Venturini é jornalista