22 ou 18?
Esta é a pergunta que a crônica portuguesa fez nos últimos dias sobre o número
de títulos nacionais do Sporting. Isso acontece porque o presidente leonino,
Bruno de Carvalho, uma espécie de Eurico Miranda de bigodes sem grife — e sem
bigode também –, resolveu dar um chapéu na história do futebol de Portugal e
aumentar o palmarés sportinguista na base da “auto-canetada”.
Explico:
O futebol
português era dividido em torneios distritais. A partir de 1922, passou a
existir o Campeonato de Portugal, que era disputado entre os melhores dos
distritais do Porto e de Lisboa, em formato eliminatório, e foi abrangendo
equipes de outras regiões com o passar dos anos (como aconteceu no Brasil com o
Torneio-Rio S. Paulo). Foi disputado 17 vezes, entre 1922 e 1938.
Vamos ao
contexto histórico e o que forçou a criação, na época, de um campeonato maior:
Nas
Eliminatórias para a Copa de 1934, Portugal levou uma sapecada da Espanha. Não
foi uma derrota qualquer: foi um sonoro 9 a 0 para os vizinhos de Península
Ibéria, num momento em que havia o plano governamental de fazer do futebol o
esporte nacional e o regime de António Oliveira Salazar queria ganhar
politicamente com isso – como a Itália de Mussolini já fazia –, ainda mais depois
do excelente papel na primeira competição internacional em que participou, os
Jogos olímpicos de Paris, em 1928. Na ocasião, Portugal ficou nas quartas-de-final e
viu duas seleções que enfrentou na preparação conquistarem medalhas: Argentina
(empate) e Itália (vitória portuguesa por 4 a 0), ouro e bronze,
respectivamente. [NE: Estado Novo e Esporte é um livro, do historiador Mauricio Drumond, que explica muito bem como o Estado Novo em Portugal e no Brasil usou o esporte como promoção política, entre 1930 e 1945, durante os governos de António Oliveira Salazar e Getúlio Vargas].
Leia também:
Pai, quanto é quatro mais um?
Leia também:
Pai, quanto é quatro mais um?
Então, entre
as temporadas 34/35 e 37/38, foram disputados quatro campeonatos de caráter
experimental, pois havia a necessidade de saber se seria economicamente viável
organizar um certame que durasse o ano todo e contemplasse equipes do país
inteiro. Nesse ínterim, o Benfica venceu três vezes e o Porto foi campeão em
uma ocasião. Nascia, a partir de 1938/39, o Campeonato Português.
Também, a
partir de 1939, começou a ser disputada a Taça de Portugal, torneio que
substituiria, nos mesmos moldes, o Campeonato de Portugal e que existe até os
dias de hoje. Vale aqui destacar que o Sporting pleiteava que os quatro troféus
que queria porque queria incluir na sua já boa lista de títulos foram
conquistados nesta época, desconsiderando então os quatro torneios feitos como
laboratório até a implementação definitiva do campeonato nacional com todos os
times disputando partidas entre si, como acontece hoje.
Nas 17
edições em que foi disputado o Campeonato de Portugal (precursor da Taça de
Portugal, não do Campeonato Português), o Sporting e o Porto venceram quatro,
Belenenses e Benfica, três, e Carcavelinhos, Marítimo e Olhanense, um cada, o
que alteraria a galeria de campeões nacionais, com o Benfica mantendo suas 35
conquistas (perde os três ganhos entre 34/35 e 37/38, mas compensa com os três
campeonatos), o Porto saltando de 27 para 30, o Sporting passando a ter os tais
22 e, de tabela, Os Belenenses subiriam de um para quatro e, ao lado do
Boavista, campeão em 2000, surgiriam Carcavelinhos, Marítimo e Olhanense, com
um título cada.
Fica difícil
encontrar um motivo que seja para justificar a desarrazoada tentativa do
presidente Bruno de Carvalho de fazer saltar o número de glórias de seu clube.
Historicamente, seria uma farsa não só considerar o Campeonato de Portugal como
antecessor do Campeonato Português, como fazer sumir as quatro edições que serviram para
pavimentar o que hoje é a Primeira Liga. Forma e conceito impedem que isso seja
levado adiante, uma vez que a Taça de Portugal, esta sim a sucessora natural e
legítima do primeiro torneio lusitano de dimensões nacionais, passou
a ser disputada quando o Campeonato deixou de existir.
A prova
inequívoca de que a tentativa nada mais é que um delírio isolado do presidente
Carvalho é que, em 2015, o próprio Sporting Club de Portugal licenciou o seu
Almanaque do Leão, escrito pelo jornalista e português Rui Miguel Tovar, e nele constam 18
títulos nacionais, não os tais 22. O próprio Tovar se recusou a revisar o
número para cima e o Sporting, ao “corrigir” o Almanaque, não contou com a
assinatura do jornalista.
Onde eu
quero chegar com isso?
Ora, quero
fazer o caminho que Cabral fez, mas aportar diretamente no Rio de Janeiro, mais
precisamente em 2010, que é quando a CBF jogou Taça Brasil, Robertão e
Brasileirão num saco só e saiu distribuindo troféus e estrelas como se não houvesse
uma história a ser respeitada (vide infográfico ao pé deste artigo).
De acordo
com a decisão da CBF, que foi baseada no trabalho dos historiadores Odir Cunha e José Carlos Peres (ligados ao Santos Futebol Clube), Taça Brasil, Roberto
Gomes Pedrosa e Campeonato Brasileiro são uma coisa só.
Não são.
O embrião do
Brasileirão foi o Torneio Rio-S. Paulo, que, como o próprio nome sugere, era
disputado por equipes destes dois estados. A primeira edição aconteceu em 1933,
mas não houve regularidade graças à transição para o futebol profissional (na
mesma época, para se ter uma ideia, registros apontam dois campeões paulistas
em alguns anos por haver dois campeonatos, o da Associação Paulista de Esporte
Atléticos (APEA), onde jogavam as equipes ainda amadoras, e a Liga Paulista de
Futebol (LPF), esta com os times que aderiram ao profissionalismo).
Voltando ao
tema.
É só na
década de 1950 que o Rio-S. Paulo é disputado com regularidade, apenas com
equipes dos dois estados até 1966. De 1967 a 1970, é chamado definitivamente de
Torneio Roberto Gomes Pedrosa (nome oficial do certame a partir de 1954) e
admite a entrada gradativa de times de outros estados: primeiro Rio Grande do
Sul, Minas Gerais e Paraná, depois Bahia e Pernambuco. A partir de 1971, passa
a ser o Campeonato Brasileiro que conhecemos hoje.
Em 1959, em
sistema eliminatório e disputada pelos campeões estaduais, surgiu a Taça
Brasil. Ela foi criada pelo nada saudoso João Havelange para substituir o
Campeonato Brasileiro de Seleções e para indicar o representante nacional na
Taça Libertadores da América, criada um ano antes.
A única
diferença entre o que aconteceu em Portugal e no Brasil é o sentido de onde
saiu o pedido. Lá, foi fruto do desvario do presidente de um clube que não
ganha nada de relevante há quase 20 anos, ao passo que aqui, embora tenha
surgido a partir do levantamento de um par de historiadores (mesmo sob encomenda de um dos clubes a serem beneficiados, o Santos), a medida é de cima
para baixo. Ora, se a CBF resolve, do nada, distribuir dez títulos nacionais
entre Santos (5), Palmeiras (2), Bahia, Botafogo e Cruzeiro (1), os clubes vão
recusar?
Caso
quisesse fazer justiça e respeitar seu próprio passado, a entidade deveria
reconhecer apenas os campeonatos disputados entre 1967 e 1970, quando Palmeiras
(2), Santos e o Tricolor do Rio venceram, em vez de tomar como verdade
inconteste os apontamentos de Cunha e Peres.
São rotos e
não se sustentariam caso o futebol brasileiro fosse sério.
Durante uma
entrevista dada à equipe esportiva da Rádio Trianon, da qual faço parte, na
tarde de 18 de dezembro do ano passado, o jornalista palmeirense (ou, como ele
mesmo diz, palmeirense jornalista) Mauro Beting deixou claro que, por justiça e
respeito à História, a Taça Brasil tem mais relação com a Copa do Brasil, não
com o Campeonato Brasileiro. No entanto, ainda segundo ele, como a CBF, que ele
comparou a um cartório, determinou, apenas cumpra-se. Friamente falando, é isso
mesmo.
No fim das
contas, a tal unificação serviu para que o Clube dos 13 fosse dinamitado no
momento em que os clubes buscavam criar uma liga independente e era preciso,
para o alto comando cebeefeano, rachar o núcleo da sua organização mais forte e
sedimentada. Quando não pode fazê-lo com títulos para ganhar o apoio que
precisava, tirou da cartola um estádio e desenterrou uma pendenga histórica,
contrariando uma decisão já morta, enterrada e julgada pelo pleno do STF: a
Copa União. Assim, puxou para debaixo de sua asa o Corinthians e o Flamengo,
apenas os dois clubes mais populares do Brasil. De quebra, por causa do diabo
de um troféu feio que dói, mas que representava a honraria fajuta de ser o
“primeiro pentacampeão nacional”, disputada a socos, pontapés e liminares entre
São Paulo e Flamengo, implodiu de vez o já citado Clube dos 13, nascido a
partir da incompetência da própria CBF em organizar um campeonato, justamente o
de 1987. Ironicamente, com a unificação, o primeiro pentacampeão brasileiro é o
Santos, que venceu a Taça Brasil ininterruptamente entre 1961 e 1965. Ao menos
por enquanto.
No país do
cinco que virou nove, do dois que hoje é oito e do seis que é seis mesmo, mas
que tem gente que enxerga sete porque o departamento comercial da emissora
assim exige, os clubes não têm culpa (exceto no último caso). Em Portugal, a
Federação Portuguesa de Futebol deixou claro que o Campeonato de Portugal é o
pai da Taça de Portugal, não do Campeonato Português. Aqui, a CBF é pai, mãe e
tutora da bagunça que, por interesse, ela mesma geriu, pariu e alimentou. Um
monstrengo que mostra que, no Brasil, como dizia o saudoso Joelmir Beting, até
o passado é imprevisível.