sexta-feira, 12 de julho de 2024

PORTUGAL - Qual é o preço da gratidão?

RESPECT Cristiano deveria ser o primeiro a proteger o seu legado
(Robbie Jay Barratt - AMA/Getty Images)

As contas são simples: antes de Cristiano Ronaldo, a presença de Portugal nas fases finais das competições era intermitente. Mais que isso, eram raras as vezes em que a bandeira de Portugal aparecia ao lado de estandartes habituados aos papelinhos de bolso com os jogos, datas e programações, como Brasil, Alemanha, Argentina e Itália, mais acostumados a estas andanças. Duas destas seguidas, só uma vez, com os Infantes, que estiveram nas fases finais do Euro em 84 e da Copa do Mundo de 86, na França e no México, respectivamente.

Não fosse pela fome de gols de Cristiano, Portugal teria falhado a Copa do Mundo de 2014. Sem ele, o Euro de 2016 não passaria de mais uma desilusão, assim como a Liga das Nações de 2019, em que estreou somente na fase final, também tem as marcas das suas botas. A lista a espalhar os feitos alcançados graças a parte dos 130 golos que fazem dele o maior artilheiro, com folga, do futebol de seleções é enorme. E os serviços prestados também. Se Portugal hoje é uma potência quando fala-se de equipes nacionais, o maior responsável é Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro. Em grande parte do percurso, um supersónico a rasgar os céus em forma de chão verde.

EU ESTOU AQUI! Três vezes na rede para garantir a vaga
à Copa de 2014 
(Jonathan Nackstrand/AFP/VEJA)

O problema é que o avançado imparável, explosivo e insaciável ficou no passado, como acontece com qualquer um quando o tempo é o marcador. Mesmo que demore, ao cabo, o tempo levará a melhor. Mas faltou-nos o miúdo de Hans Christian Andersen a avisar que o rei ia nu pelas ruas da Alemanha e, a despeito de tanto talento espalhado em todas as posições e para vários tipos de jogo, o Cristiano Ronaldo procurado era o dos golos à Suécia, à Espanha ou à Suíça, em vez do jogador de 39 anos que os 50 e poucos jogos pesaram como nunca às pernas.

Se em 2022, Cristiano quis usar o Mundial do Catar para mostrar ao mundo que seu clube, Manchester United, e seu treinador, Erik Ten Hag, não lhe davam o valor que merecia - e essa obsessão deitou tudo por terra -, o caminho até o início deste Euro mostrou um jogador ainda com faro de gols e marcas, e útil. Dizia-se, e eu também o disse, que havia dois Portugais diferentes, mas a melhor versão era a que tinha Cristiano Ronaldo, desde que fosse associativo e jogasse para o time, como fez no amistoso contra a Irlanda e nos dois primeiros jogos do Euro, não coincidentemente os únicos em que Portugal venceu. Mais que isso: os dois em que Portugal marcou golos.

Até que...

Até que veio a necessidade de ser o primeiro e único a levar o pão à sopa em seis fases finais - ou manter limpo e estatuto de marcar em todas as competições em que participou com a camisola das quinas. Jogou quando não precisava, foi mantido em campo apesar do rendimento que, de insuficiente, passou a miserável conforme o tempo cerrou a marcação.

Então, o jogador associativo deu lugar a alguém que visava estar o mais próximo possível do gol, que pouco se ligou ao jogo coletivo. Portugal, ao longo de toda a prova, cruzou 153 vezes na área. Nos quartos de final contra a França, a bola foi despejada na área em busca de um avançado facilmente domado pela dupla Upamecano-Saliba 30 vezes, e em só duas Cristiano levou vantagem. Para ilustrar melhor sua participação direta no Euro, Cristiano tocou na bola em média 31,4 vezes por partida, seu pior registro em todas as Euros e Copas do Mundo. Em 2016, na vitória contra a Croácia, o camisa 7 encostou na bola 42 vezes e essa havia sido a menor marca até então. No mesmo jogo, Rui Patrício teve contato com a bola 46 vezes.

Como se não bastasse, a simples presença do jogador demandava alterações no posicionamento de peças fundamentais no sistema de jogo do treinador Roberto Martinez, que funcionou à perfeição nos duelos contra os oponentes mais macios das eliminatórias. Bruno Fernandes, que melhor joga quando apanha a bola na intermediária ofensiva, onde há mais espaços e tempo, tinha que pisar terrenos mais altos para compensar a falta de pressão à saída de bola, já que não se pode exigir este tipo de esforço de um avançado de 39 anos, mesmo sendo supostamente um robô; com a subida do 8, Bernardo Silva cumpria um papel de extremo para o qual nunca foi preponderante. Ou seja, a influência dos dois jogadores mais talentosos de grupo foi diminuída em troca da sombra do que Cristiano já foi. E nenhuma entre as 24 participantes do Campeonato Europeu dispôs de seis amistosos desde o fim das eliminatórias e a prova.

Discutir o papel de Cristiano não é um sinal de ingratidão a quem tanto nos deu. Tê-lo em campo nas segundas partes, quando sua fome tenderia a ser maior contra adversários possivelmente com as ideias e movimentos prejudicados pelo desgaste, só faria sentido se testes assim fossem feitos. Além da hipótese de aumentar a influência do capitão nos momentos em que estivesse em campo, ainda pouparia sua imagem e seu legado. E ainda passaria a ideia de alguém mais comprometido com os objetivos do grupo, em vez de suas próprias marcas. 

Mbappé foi substituído contra Portugal; Harry Kane deixou a meia-final contra os Países Baixos quando o placar ainda apontava a igualdade, desfeita justamente por quem o rendeu; na Copa América, Luis Suárez foi suplente do Uruguai e Messi sequer calçou chuteiras para ficar no banco contra o Peru, na última rodada da primeira fase. Cristiano só viu o número da sua camisola na placa que aponta as substituições aos 66 minutos contra a Géorgia, quando as contas no grupo já estavam feitas e sequer deveria ter jogado. Menos sentido ainda fará se quem tanto serviu à seleção insistir em se servir dela em nome de uma gratidão que ao cabo poderá ficar dispendiosa demais.  

Se calhar, faltou o miúdo a dizer que o rei estava nu. A diferença para o conto de Hans Christian Andersen é que toda a gente já havia notado.

quinta-feira, 11 de julho de 2024

PORTUGUESA - Haverá amanhã?

*Originalmente publicado no NetLusa

TEMPO FECHADO Nova penhora pode asfixiar as contas e
inviabilizar a continuidade da Lusa (Ronaldo Barreto/NetLusa)
 

O volte-face no acordo que a Portuguesa tinha na Justiça do Trabalho é a pior notícia em anos para o clube. Conforme noticiado pelo jornalista Luiz Nascimento, do Paixão Lusa, e cujos desdobramentos foram publicados no NETLUSA, trata-se de uma medida que pode inviabilizar a existência da Lusa a curto prazo caso não seja revertida.

Sem a verba de patrocínio, cotas de participação no Campeonato Paulista e outras receitas que garantiam o pagamento em dia do acordo que havia sido celebrado e que foi suspenso, não haverá sequer garantia de que o clube funcionará.

A boa notícia, se é que há alguma, é que cabe recurso. A má, ao menos uma delas, é que ficará mais complicado de trazer novas fontes de receita, como uma bola de neve nefasta em que a pior notícia é sempre a próxima.

Pelo que Luiz Nascimento disse, no ritmo em que os pagamentos eram realizados (foram cerca de R$ 11 milhões pagos nos três anos de vigência do acordo), o prazo de seis anos para o pagamento de todos os processos incluídos dificilmente seria cumprido. Mesmo porque não ocorreu o crescimento de receitas que faria com que o valor da parcela (30% das receitas ou o mínimo de R$ 250 mil) também aumentasse e o processo fosse acelerado.

Haverá saída? A SAF será a tábua de salvação? Em que condições a Portuguesa fechará a venda do futebol para investidores se realmente houver esse aumento da divida a curto prazo?

Não é o equilíbrio das contas que está em jogo, é a existência da Portuguesa que está em risco.

segunda-feira, 8 de julho de 2024

BRASIL - Por que o Brasil piorou 10 anos depois do 7 a 1?

DA DOR AO RISO: tratar a tragédia como chacota só piorou
o futebol brasileiro (Imagem: Jamie McDonald/Getty Images)

O maior vexame da história do esporte completa 10 anos hoje, 8 de julho. A efeméride, data redonda, ganhou mais força com a precoce eliminação da seleção brasileira na Copa América disputada nos Estados Unidos, a nova casa do futebol sulamericano – e brasileiro, ao menos quando se trata da seleção, mas vamos a isto mais adiante.

Gentes muito melhores que eu, como o comentarista Carlos Eduardo Mansur, do Grupo Globo, não gostam dos adjetivos, que (des) qualificam o episódio como vergonha e vexame. Eu considero que servem à perfeição para falar da hecatombe que acometeu a camisa mais pesada do esporte mais popular do mundo, ainda mais jogando em casa. Logo, o termo cabe.

Se o 7 a 1 serviu para algo, foi para redimir a geração que foi empurrada para a derrota pelo oba-oba de políticos, que não tinham intenções das mais puras – nunca as têm – e da imprensa no jogo que decidiu a Copa do Mundo de 1950. Passados 10 anos do atropelamento alemão, que nem cumpria uma campanha tão brilhante assim naquele mundial, o futebol brasileiro regrediu. Mesmo os incrementos financeiros resultantes do aumento da média de público podem ser considerados como avanços sem o senão dos efeitos da gentrificação, do afastamento do povo pobre e preto das arquibancadas.

A seleção brasileira está mais afastada do torcedor do que há 10 anos, quando as piadas pelo Mineiraço já surgiam no intervalo, no colo do 5 a 0 que ainda aumentaria para o sete-a-um que virou verbete informal para as agruras do cotidiano. A capacidade de rir da própria desgraça é tão brasileira quanto quem nasce, vive e morre no país. Por um lado, ajuda a aliviar as mazelas da vida de quem sofre e não tem muitas perspectivas. Por outro, porém, ao aceitar as agruras em vez de combatê-las, ajudamos a perpetuar este sistema que insiste em normalizar o inaceitável, seja qual for o setor.

Pouco de concreto foi feito para corrigir a rota do futebol nacional. No ano seguinte, a CBF promoveu uma reunião com ex-técnicos da Seleção para buscar respostas. Para participar do encontro, que reuniu o então treinador Dunga e Parreira, Zagallo, Carlos Alberto Silva, Paulo Roberto Falcão, Sebastião Lazaroni, Candinho e Ernesto Paulo, bastava ter sido treinador da seleção e estar vivo na ocasião. Mano Menezes, Felipão, Vanderlei Luxemburgo e Leão foram convidados, mas não participaram de um evento que resultou num sem número de chavões, discursos vazios e constatações óbvias.

No mesmo ano, a entidade criou seu curso de treinadores, com o nome pomposo de CBF Academy. No entanto, os efeitos práticos são indetectáveis. Dez anos depois, o Campeonato Brasileiro foi iniciado com metade dos clubes tendo treinadores estrangeiros, boa parte deles vindos de Portugal e da Argentina. O curso de treinadores da Argentina, o AFTA Campus Virtual, teve treinadores portugueses como instrutores, tanto que é válido na Europa, e essa limitação impede um intercâmbio que favoreceria o desenvolvimento do futebol nacional. Não se trata de copiar os métodos, e sim de entender os conceitos e utilizar o que pode ajudar, dentro das bases do futebol nacional, a desenvolvê-lo. 

Ao cabo, passamos por uma profunda crise de identidade, sem uma cultura tática estabelecida e tentando emular os sistemas da moda na Europa, mas não entendemos ou respeitamos os processos necessários para que os tais sistemas sejam compreendidos. Hoje, a busca é pela posse de bola, pela transição rápida, pelo jogo que transforma os meias em meros passadores de bola e o futebol posicional. Técnicos seguem promovendo sistemas táticos que tentam evitar a derrota para protegerem seus empregos. Programas de debate barulhentos, cujo objetivo maior é criar engajamento por meio de opiniões enfáticas, polêmicas e rasas, buscam respostas fáceis para segurar a audiência de torcedores que preferem acompanhar canais segmentados ou influenciadores sem o menor compromisso com a informação. Atende-se assim aqueles que não querem contraditório, mas querem endosso.

Respostas fáceis. Muitas delas voltaram com força com a eliminação para o Uruguai. E tome falar de seres hipotéticos, como o amor à camisa, a falta que o Neymar faz, a falta de protagonistas, a seleção de 2006. Obviamente, o comportamento dos jogadores, ralhando com a torcida a cada gol contra a poderosa esquadra paraguaia, o bate-boca público de Vini Jr a um jornalista que fez críticas técnicas ao seu desempenho no mesmo jogo, ou a desastrosa entrevista de Andreas Pereira, sugerindo que jogar na Premier League seja o suficiente até para causar inveja aos jogadores do Uruguai, histórico rival e orgulhoso de sua própria e gigante história, é contraproducente, não ajuda e ainda atrapalha. Isso vindo de um jogador que no Flamengo era reserva de um uruguaio, que nem é titular na Celeste.

Este ambiente forjado à base do "nós contra eles" pode ter dado certo com Felipão em 2002, mas foi uma completa tragédia com Dunga. O capitão Danilo foi ao pé da torcida cobrar apoio após um medonho 0 a 0 com a Costa Rica; Endrick deu a entender que alguns ali faziam um favor ao defender a seleção quando poderiam estar de férias. Endrick precisava dar a entrevista após a eliminação? Passou pela cabeça de Andreas que suas declarações seriam combustível para um adversário que, além de estar em um melhor momento, não precisa de um estímulo extra? Neste sentido, há jogadores uruguaios que o torcedor brasileiro gostaria de ver usando a camisa amarela. É sinal de que falta, além de autocrítica, gestão.

Ainda assim, é só mais um aspecto nessa profunda crise, e não dá para dissociar do 7 a 1. A primeira resposta fácil foi o retorno de Dunga, que já havia sido escolhido para o ciclo seguinte a 2006 porque representava entrega, disciplina e identificação com a camisa da seleção. Não funcionou porque o problema certamente não era esse. Veio Tite e o Brasil saiu do nada para o muito bom, vencendo todos os jogos de uma eliminatória tida como “a mais difícil de todos os tempos”. Foi um suspiro de modernidade e eficiência, mas que fez ressurgir o ufanismo tão nosso de cada dia que causa estragos desde 1950.

Pela melhora imediata apresentada logo à chegada de Tite e sua comissão técnica, seu trabalho passou a ser incensado por quem deveria manter uma distância segura para evitar a contaminação, mas a cobertura da seleção brasileira, mais do que qualquer outra no mundo – e não por acaso –, é acompanhada pelo exagero para o bem ou para o mal, e não havia a contestação necessária para não vender a ilusão de favoritismo absoluto.

Deve-se admitir que Tite, no comando da seleção, fez com que houvesse um trabalho diário, com método, processos e profissionalismo, mas não o suficiente para que o Brasil fosse além das quartas-de-final da Copas de 2018 e 2022. Pecado dos maiores, também não foi o bastante para delimitar ao gramado a influência do melhor jogador da geração, a ponto de aceitar bovinamente o acesso dos “parças” e que seu pai, eminência parda da seleção brasileira e que sequer deveria estar próximo, corroesse o cronograma hierárquico necessário a qualquer organização.  

Outro ponto, já abordado aqui, é o afastamento do torcedor. E são diversos os vértices a ligar as arestas dessa figura cheia de faces: Pegando o recorte específico abordado aqui, desde o 7 a 1, o Brasil jogou 49 amistosos. Destes, somente cinco foram jogados no país. Em termos de comparação, o Brasil jogou 11 vezes nos Estados Unidos e seis na Inglaterra. Nem quando havia a possibilidade de buscar uma reaproximação, e a melhor oportunidade se ofereceu antes da Copa de 2018. O único amistoso realizado naquele ano antes do Mundial ocorreu em março. E não foi no Brasil, foi na Rússia. Jogos oficiais são proibitivos pelo preço. O ingresso mais barato do último jogo de eliminatórias disputado em terras brasileiras custou R$ 200,00 (a meia entrada). O preço cheio variou entre R$ 400 e R$ 600. 

O calendário também não ajuda, com a imposição das 38 rodadas do Campeonato Brasileiro e a necessidade de proteger os campeonatos estaduais, que garantem a subsistência de inúmeros clubes, postos de trabalho e setores da economia local. Queiram ou não os defensores do planejamento hipotético dos maiores clubes, o futebol não se restringe aos 13 que criaram a Copa União, em 1987, nem os outros estão fadados a serem seus entrepostos. A resposta? Não sei, mas defenestrar os clubes menos ricos ou menores jamais será o caminho.

Um dos impactos é a impossibilidade de parar os campeonatos para que seleção possa atuar. E nem adianta falar que no dia dos jogos da seleção não há jogos, já que eles acontecem no dia seguinte. Como acomodar isso? Haverá quem possa dar as respostas. Por aqui, fazemos as perguntas e fomentamos o debate. O jornalista Júlio Gomes sugeriu, em sua coluna do UOL, inverter estaduais e o Brasileiro para coexistirem de maneira mais inteligente e poder haver uma parada de verdade para que os jogos da seleção não desfalquem os clubes e causem a revolta de torcedores e jornalistas mais figadais, digamos assim. Eu considero a ideia do Júlio muito boa, portanto, viável. A minha seria mandar às favas os pontos corridos. Não acontecerá.

Mas voltemos à eliminação na Copa América. Ela é o resultado de todas as barbeiragens cometidas pela CBF, sobretudo pelo seu presidente, Ednaldo Rodrigues. Não a eliminação em si, mas a forma, que até foi previsível. A queda nas quartas de final, no Catar, foi encarada como fracasso e, em vez de esperar pelo rescaldo e analisar o que foi feito de bom e de mau, que é o mínino que se espera quando existe algum direcionamento, tudo o que foi trabalhado até ali foi jogado fora. O Brasil ficou sem supervisor e diretor de seleções e todas as decisões foram tomadas monocraticamente por Rodrigues, que não é lá um sujeito a quem se possa atribuir todas as qualidades de um grande gestor. Se fosse, não compraria a ideia, praticamente platônica, de que Carlo Ancelotti ocuparia o cargo de treinador da seleção. Mais que isso, caso Carlo realmente tivesse assinado o contrato, a transição jamais poderia ser feita por um treinador com características tão diferentes.

Até Ednaldo sabe disso, tanto que vendeu a ideia de que Fernando Diniz e Carlo Ancelotti tinham conceitos parecidos. O problema é que claramente não são. De toda forma, qualquer que fosse o resultado desse “espera aí que eu vou depois”, o treinador pegaria um trabalho a partir do zero, que é o que aconteceu com Dorival Júnior. A Copa América, portanto, não poderia ser o ponto de análise do trabalho, e sim o de partida, e o resultado é o que menos deveria importar.

No entanto, como não existem verdades absolutas ou garantias de vitórias no futebol, não é possível notar que o período entre a apresentação dos convocados e a despedida do torneio não trouxe evolução alguma. O que pudemos perceber foi o contrário: a incapacidade de sair jogando – o jornalista Leonardo Bertozzi trouxe, no Linha de Passe seguinte ao jogo com o Uruguai,  um dado insuspeito: os jogadores que mais tocaram na bola no primeiro tempo foram o zagueiro Marquinhos e o goleiro Alisson, além de que apenas um passe foi concretizado no último terço do campo defensivo uruguaio – e a falta de rotinas que pudessem potencializar o talento dos principais jogadores, que, sim, existem e atuam destacadamente em alguns dos principais clubes do mundo.

Este texto não tem a intenção de dar as repostas e interditar o debate. Pelo contrário, é preciso analisar e tentar entender o que levou o futebol brasileiro para além do fundo do poço, que, imaginava-se, era perder de 7 a 1 em casa numa semifinal de Copa do Mundo.

sábado, 6 de julho de 2024

PORTUGAL - Que pena, Portugal

Texto originalmente publicado no Netlusa

LENDAS DAS ÁREAS Estes senhores dispensam legendas, mas
é preciso que um deles entenda seus limites (Hassan Ammar)

“O único erro foi a bola não ter entrado”. Assim, Roberto Martinez definiu a prestação de Portugal nas meias-finais do Euro-2024. Também disse que não se deve avaliar a participação portuguesa por três jogos. Um a mais que a metade dos cinco, sem contarmos a hora adicional em forma de prolongamentos.

Foram 364 minutos sem meter a bola, este ser que ganha vontades quando as nossas intenções não se concretizam, nas balizas contrárias. E há muitos nomes aqui a responderem por isso: Mamardashvili, Oblak, Maignan, Martinez, Ronaldo.

O que Martinez disse é que a bola não quis entrar. Noutro sentido, o ótimo Francisco Martins, jornalista do Expresso, sacou no podcast No Princípio era a Bola a frase que melhor resume e responde: “A bola não quis entrar e Cristiano Ronaldo não quis sair”. Reduzindo a este jogo em específico, foi o que faltou a Portugal.

Se há algo sobre o qual ninguém poderá apontar o dedo a Martinez é pela sua capacidade de preparar a seleção para os jogos. Exceto pela abordagem desastrosa – como todo o resto naquele dia – para a partida contra a Geórgia, o selecionador português sempre apresentou a melhor formação possível para os contextos que se avizinhavam. 

Contra a poderosa França, de prestações à medida em todos os jogos até aqui, mas com claras hipóteses de crescer de acordo com a exigência apresentada – e Portugal exigiu o melhor que os gauleses poderiam dar –, Martinez apostou no seu onze base, mas com alguma diferença nas funções, diferenças essas há muito solicitadas. 

A mais flagrante e necessária: Bernardo Silva foi descolado da linha lateral e buscou associações com João Cancelo, dividido entre apoiar o ataque – e fê-lo muito bem – segurar Mbappé, figura opaca em campo graças ao trabalho defensivo do lateral português e aos incômodos proporcionados pela máscara que trazia colada à cara. Do outro lado, Nuno Mendes manteve a tendência de crescimento e formou uma dupla diabólica com Rafael Leão, ligeiramente abaixo porque ainda não dá a melhor continuação às jogadas quando vence a marcação.

Esses elementos, somados a João Palhinha e Vitinha, fizeram com que o melhor de Portugal fosse melhor que o melhor da França, capaz de bascular o jogo de extremo a extremo com seu espetacular trio de médios formado por Camavinga, Tchouaméni e Kanté. Ainda assim, foi um duelo equilibrado e que, caísse para o lado que fosse nos 90 e tantos minutos, não haveria voz lúcida em Hamburgo, Paris, Lisboa ou em Diadema a sugerir uma injustiça.

Os pontos de desequilíbrio estavam justamente nas outras extremidades do campo, onde Rúben Dias e Pepe – este é um caso à parte e já voltaremos a isto – engoliam quem quer que surgisse por ali e Upamecano e Saliba sobravam para neutralizar um destoante Cristiano Ronaldo.

E aqui talvez esteja a resposta para o desempenho abaixo do possível de figuras de proa da equipa nacional como Bruno Fernandes, posicionado mais perto da área para compensar a ocupação de espaços que o capitão já não pode dar. E Cristiano deu pouco na maior parte da prova, sobretudo quando não foi poupado quando deveria.

Já lá voltaremos também.

A França é uma equipa que, sob Deschamps, pode ser classificada como a seleção mais cínica do mundo. Parece adormecida, adepta da lei do mínimo esforço, somente o necessário. Aí, quando o oponente abaixa os braços, vem o golpe. Suas capacidades acabam por moldar o adversário, e com Portugal não foi diferente. A primeira parte foi de estudos de parte a parte, poucas excursões ao coração da área adversária mais pela superioridade dos defensores do que pela vontade dos avançados, tanto que, remates, foram poucos concretizados.

O senso de urgência adquirido nos balneários após passadas a limpo as impressões trazidas do relvado trouxe duas equipes acutilantes, determinadas a evitar o drama da prorrogação e com a faca nos dentes. Palhinha travava Mbappé, Camavinga esteve a centímetros de fazer a festa gaulesa e Kolo Muani reviu Dibu Matinez na pele de Rúben Dias, dono e senhor de uma intervenção daquelas que valem por um gol a socorrer um Diogo Costa, cujos milagres não seriam suficientes naquele instante.

Do outro lado, Maignan esteve magnânimo para aplacar Leão. Depois, para fazer a defesa da noite quando Bruno Fernandes apareceu livre, em movimento a rasgar e recebendo passe açucarado tal uma bola de Berlim, que era onde Portugal queria estar no dia 14, mas o braço esticado do guardião francês não permitiu. Depois contou com a sorte para ver o chute colocado de João Cancelo ter outro destino, que não a vértice contrária.

A essa altura, Dembelé já estava em campo, rendendo um inoperante Griezmann. A resposta dada por Martinez foi lançar Francisco Conceição e Nelson Semedo. Deschamps ainda lançaria folego novo e pernas frescas com Marcus Thuram e Barcola. Na mesma altura, já no tempo-extra, João Félix voltaria a ser utilizado após inexplicavelmente fiar de fora de todas as opções contra a Eslovênia.

Se és um atacante e vestes a camisola da França, terás sido devorado por Pepe, possivelmente na melhor atuação desde que estreou pela Selecção Nacional. Aos 41 anos, que só foram notados naquele lance já no prolongamento contra os georgianos, o melhor zagueiro português da história – e um dos melhores do século em qualquer que seja a lista mundial que for feita se esta for minimamente séria – deu uma aula de posicionamento, leitura de jogo e vigor. Limpo, na bola, sempre na bola.

Os minutos se arrastaram até a necessidade de haver outros 30, que começaram com Francisco Conceição a levar de vencida toda a gente francesa que estivesse à sua frente antes de oferecer o gol a Cristiano Ronaldo. Aquele que fez cinco golos na última Euro não enviaria a bola à lua, como fez este, a versão pré-reforma que não venceu o tempo. 

O minuto além do 120 talvez tenha feito a pergunta a ser respondida: precisávamos do drama do prolongamento frente à Eslovênia. Em Hamburgo, este minuto teve dois ataques, de parte a parte, em que ficou nítido que o cansaço impediu que Portugal marcasse quando Nuno Mendes escolheu o pé menos usual para dar seguimento ao passe de Bernardo Silva. Thuram, na resposta, teve a porta fechada por Pepe, o melhor de todos os que estavam em campo. Pouco antes, Félix e Barcola tiveram suas hipóteses, mas as malhas que receberam a bola foram as do lado externo.

A esperança residiu ao fim no milagreiro da fase anterior, São Diogo, mas nem com asas ele pegaria as cobranças perfeitas de Dembelé, Fofana, Koundé, Barcola e Theo Hernandez. Chamado a abrir a série portuguesa, Cristiano não tremeu. Bernado, como havia sido nos oitavas, também foi perfeito, mas João Félix, que substituiu o outro batedor, Bruno Fernandes, acabou acertando o poste. A cobrança sem reparos de Nuno Mendes serviu somente para manter a fé dos portugueses por alguns segundos.   

Se a França fez por onde passar, Portugal talvez tenha feito mais, mas o futebol é isto. Como é perceber o que foi feito de mau, reforçar o que foi feito de bom e, pelo amor de Deus, resolver o que fazer com o maior jogador português de sempre, que precisa ser convencido de que não há mais nada a provar.

O melhor jogo foi o último e há ótimos indicadores para o futuro, mas é preciso ter coragem.

***

As avaliações a seguir têm um certo exagero, galhofa e quase nenhuma base técnica. É favor não levar tão a sério.

Diogo Costa: nem se voasse pegaria as cobranças francesas. Milagres não são feitos todos os dias; 
João Cancelo: se a Eurocopa serviu para algo, foi para recuperar o futebol de quem sequer sabe onde jogará na próxima temporada (Nelson Semedo: outro a recuperar a dignidade na relva alemã. Se quiseres, a lateral de um certo time vermelho da Segunda Circular estará à sua espera); 
Rúben Dias: o bloqueio ao chute do Kolo Muani teria sido aplaudido por Dibu Martinez; 
Pepe: vai voltar para Portugal com a mala carregada de atacantes de 10 a 20 anos mais jovens e incapazes de superá-lo. Um monumento de jogador; 
Nuno Mendes: a bola do jogo calhou-lhe ao pé errado. Melhor a cada jogo. 2026 estará à porta; 
João Palhinha: olhem o mapa mundi e reparem: a superfície é coberta por 60 e tal por cento de água. O resto é coberto pelo João Palhinha (Rúben Neves: era bonito seus passes teleguiados serem vistos mais vezes na Alemanha); 
Vitinha: o único azar é pisar os mesmos lugares de Bruno Fernandes (Matheus Nunes: perdeste suas férias para isso?);
Bruno Fernandes: poderia ter baixado mais vezes para organizar o jogo desde trás, onde há mais espaços. Nas duas vezes em que conseguiu, Portugal quase marcou. E ter saído é uma das tolices que ficaram na conta do mister (Francisco Conceição: seu pai certamente ficou mais orgulhoso pelo que viu do que o pai do Marcus Thuram. O problema é que eles saíram felizes, nós não); 
Bernardo Silva: juro que não entendo que caral** faz com que jogues como extremo. Entra técnico, sai técnico, e não há um corno pra te deixar jogar solto. Fez isso contra a França e, obviamente, Portugal cresceu; 
Rafael Leão: Koundé deveria passar por terapia para se livrar dos traumas causados pelos avanços de Rafael Leão. Nós todos também teremos que passar por terapia para esquecer que Rafael Leão ganha todas as jogadas e não acontece nada depois disso, a não ser uma ou outra ecrã quebrada por quem esperava pelo golo (João Félix: merecias mais respeito e minutos, mas nunca no lugar de Rafael Leão);
Cristiano Ronaldo: por quê, Cristiano? 
Roberto Martinez: havia muito potencial, flexibilidade tática, jogadores acima da média em todas as posições. Mas havia um treinador que dispôs de seis amistosos - mais um jogo para cumprir tabela - para preparar um time que ficou amarrado às vontades de seu capitão, que começou bem, mas deitou tudo ao chão conforme seu golo não saiu. O que dói é que poderia ser melhor. Uma pena, Roberto, mas simpatia não basta nos grandes palcos.

BRASIL - Tragédia anunciada... Ou não!

Por Waldir Manoel do Nascimento*

LINHAS TORTAS Suspensão de Vini Jr abre caminho para a titularidade
de Endrick (
Pedro Loureiro/Eurasia Sport Images/Getty Images)

Longe de mim cair na vala comum de dizer que o futebol é uma caixinha de surpresas. Mas que é, é. E tudo pode acontecer quando Brasil e Uruguai entrarem em campo na noite deste sábado, às 22h, pelas quartas de final da Copa América dos Estados Unidos. Mas existe um favorito para o confronto e ele veste azul. mais precisamente azul celeste.

Levando em conta os últimos resultados e o rendimento da equipe uruguaia comandada por Marcelo Bielsa, comparada ao time brasileiro de Dorival Júnior, creio que não há quem conteste que o favoritismo celeste seja real. Uma equipe de ótima qualidade técnica, bem montada e intensa. Como time, é bem superior que o seu adversário desta noite.

O Brasil, do ainda invicto Dorival, também tem a sua boa dose de qualidade técnica, mas ainda não é um time. Ainda tem bem pouca organização defensiva, há muito espaço entre os volantes e a defesa, e ao mesmo tempo não se sabe qual é a ideia quando tem a bola. Não ficou clara a intenção de Dorival com Rodrygo pelo meio junto com mais dois pontas.

Suspeito que a ideia seja limpar terreno para a volta do Neymar ao time, mas isso é tema para outra hora. Seja lá qual for a ideia, não funcionou e, forçadamente, Dorival vai mudar.

Com dois cartões evitáveis acumulados, Vini Jr está suspenso e o técnico brasileiro já confirmou a escalação de Endrick. Assim, enfim, teremos centroavante, Rodrygo jogando onde ele gosta e Raphinha (ou Savinho?) na ponta direita.

O jogo tem todo cheiro de nova tragédia na história da Seleção Brasileira, embora ninguém vá se surpreender com uma eliminação nessa noite.

Porém, lembra da história da caixinha de surpresas? Ainda que Dorival tenha cortado o barato do menino Endrick ao interromper a sequência de bons minutos que vinha tendo, é em jogos assim que os grandes nomes do futebol brilham e mostram por que são diferentes.

Quem sabe não é a vez dele?

*Cosplay do maior trio de jogadores da história do futebol mundial.

sexta-feira, 5 de julho de 2024

PORTUGUESA - O desafio de sobreviver às saídas dos destaques

DE VOLTA AO RADAR O despertar do interesse dos rivais mostra a evolução do 
trabalho, mas demanda acerto na substituição (Divulgação/Portuguesa)

A Portuguesa emprestou alguns dos seus prováveis titulares na disputa da Copa Paulista. Obviamente, teve gente que reclamou: onde já se viu deixar os melhores saírem? Quero ver a reposição! É sempre assim, que nunca mais ponha os pés no Canindé!

Houve quem compreendesse. A Copa Paulista não é vitrine, não é atrativa e só está no horizonte de quem busca um lugar ao sol ou não conseguirá algo melhor mesmo.

Quem está errado? O torcedor, que quer que os destaques fiquem e cumpram o destino de recolocar a Lusa no lugar dela e quem fizer pela vida em outros cantos que vá para o caralho? Os jogadores, que têm mais é que buscar quem lhe ofereça, dentro do seu plano de carreira, as melhores condições? A diretoria, que não amarra ninguém com multas milionárias, nem arranja um investidor?

Ninguém está errado.

Mas há outro grupo: o dos resignados, que sabem que é assim mesmo e que não há o que fazer, a não ser esperar pela redenção em forma de surgimento de um novo Dener, um Zé Roberto 30 anos depois, ou mesmo um xeque disposto a lavar seus petrodólares ou euros nos lados do Pari.

Achamos o erro. Se ele for cometido por quem toma as decisões, então, é todo o caminho andado para seguirmos no limbo. Mesmo deixando escapar um Talles, um Denis, um Maceió, é nítido que o patamar de quem veste a camisa da Lusa subiu. E subiu a ponto de despertar o interesse de clubes das séries A e B.

“Beleza, Marcos, então é isso?”. É e não é. É porque, no ecossistema da bola, não é difícil perceber que a Portuguesa está na base da cadeia alimentar e que todo bicho que se move pode ser o predador. Entender essa situação é fundamental para o que vem a seguir: a previsibilidade e a antecipação.

Uma vez admitida a fragilidade no mercado da bola, é preciso detectar os potenciais alvos do mercado – os jogadores que apresentarem o equilíbrio entre talento e margem de crescimento -, que ao cabo são os melhores do elenco. Depois, buscar substitutos. É a tal antecipação que eu falei lá em cima.

Esse trabalho de prospecção, de preferência, deve detectar o atleta a ser abordado antes da saída do destaque já sinalizado. Obviamente, deve ter características que sejam adequadas ao tipo de futebol que o time quer praticar.

O livro Soccernomics, que o jornalista Simon Kuper, do jornal Financial Times, e o professor de economia Stefan Szymanski, da Universidade de Michigan, lançaram em 2009, destaca como o Lyon, da França, foi da condição de um time qualquer da segunda divisão para heptacampeão nacional quando foi adquirido pelo empresário do ramo de softwares Jean-Michel Aulas.

Sim, um empresário bem sucedido comprou um time endividado e o transformou na potência que só foi desbancada pela negociata que envolveu o Catar, o PSG, o presidente da França Nicolas Sarkozy, Michel Platini e a compra de votos da Europa para a escolha da sede da Copa do Mundo de 2022.

O Málaga, por exemplo, foi comprado por um desses aventureiros que volta e meia surgem, chegou a fases altas da Liga dos Campeões, não ganhou nada, gastou de qualquer jeito e hoje sua torcida festeja o retorno à segunda divisão espanhola. Vejam, portanto, que não se trata somente do dinheiro, mas do que fazer com ele. O Lyon, por sua vez, detectava seus maiores ativos e os vendia, e bem. Benzema, Diarra, Malouda, Essien e Abidal valeram muito dinheiro para o clube.

Antes que me chamem de louco, não estou comparando porque não se trata de chegar onde o Lyon chegou, e sim de arrumar um chão firme onde se possa colocar os pés rubro-verdes. Sem metodologia, know-how (não há termo melhor em português, lamento) e competência para trabalhar, o pneu seguirá girando em falso, atolado no limbo da Copa Paulista e da busca por uma vaga na Série D.

Profissionalismo não basta. A Lusa teve gente vivida no futebol – e festejada por mim aqui – que não esteve à altura da missão. É lugar comum, mas é necessário ter gente capaz de fazer esse trabalho de detecção e prospecção dentro do alcance de nossos ainda curtos braços. Acreditem: ter um profissional assim é um investimento que pode ser mais caro a curto prazo, mas valerá mais ser feito do que contratar dois ou três medalhões distantes de seus melhores dias para se manter na elite do Paulistão e garantir a vaga na Série D do ano seguinte. A estrutura não é só física, é pessoal também.

Não que represente uma garantia, porque nada garante resultados, mas um trabalho bem feito aumenta as possibilidades de acerto.

quarta-feira, 3 de julho de 2024

PORTUGAL - São Diogo

*Originalmente publicado no Netlusa

Na noite em que faltou treinador e os veteranos quase
ruíram, sobroua sobrenatural atuação para expiar
 os pecados portugueses (Heiko Becker/Reuters)

Portugal orgulha-se de ser o país mais católico do mundo. Ao menos quando miúdo ouvi muitas vezes esta ideia. Os tempos podem ser outros, mas não haverá um português, seja em Portugal, na Alemanha ou em algures no mundo que não tenha acendido uma vela para São Diogo.

Mas nem era preciso tanto sofrimento. Se existiu um acerto da parte de Roberto Martinez, este foi a escalação. Depois das mal sucedidas e mal explicadas experiências com a Geórgia, Portugal foi a Frankfurt com o sistema com dois zagueiros, tendo Nuno Mendes e João Cancelo nas laterais; os incansáveis João Palhinha e Vitinha como trincos, tendo este a missão de ser amálgama para toda a equipa. Bruno Fernandes mais próximo da área e Bernardo Silva dando largura à direita para Cristiano Ronaldo e Rafael Leão, este sempre aberto do outro lado, completarem o onze inicial. 

Sem surpresas, pois.

Surpreendente, de fato, foi o espaço que Portugal encontrou no início acutilante, na melhor entrada da turma de Martinez nesta Eurocopa. Há quem diga que Portugal andava pendido à esquerda, mas as principais jogadas sempre iam ter pelos lados de Rafael Leão, que deu as caras na competição, e Nuno Mendes, um verdadeiro tormento. E o placar só não foi movimentado porque sempre faltava algo, fossem pernas para Bernardo Silva alcançar o passe de Bruno Fernandes ou Cristiano fazer jus ao bom nome de goleador que tem. 

Os cinquenta e poucos jogos que suas pernas levam na temporada parecem pesar, a ponto de lhe tirar explosão e tempo de bola, justamente as suas principais armas. Não tem sido raras as vezes em que o camisa 7 quase chega à bola. Foi assim contra a Geórgia, foi assim no Qatar, há um ano e meio.

Ainda não ter levado o pão à sopa tem trazido à tona o pior de Cristiano Ronaldo: a ansiedade. Contra a Eslovênia, aquele atacante associativo deu lugar à versão atabalhoada e mesquinha, que invariavelmente tomará a pior decisão, como na cobrança de falta praticamente sem ângulo nem cabimento, em que tentou mandar direto para o gol, como se lá estivesse um qualquer.

Como Portugal não marcou, a intensidade caiu e a Eslovênia conseguiu respirar um bocado e vez ou outra até criou problemas, ora com Sesko - perigoso avançado de 21 anos, que venceu alguns duelos com Pepe, o monumental defensor com quase o dobro da sua idade -, ora com Sporar, de quem a bola foi tirada uma par de vezes por um Nuno Mendes insinuante a apoiar e diligente a defender. 

A segunda metade da primeira etapa teve alguma calmaria, quebrada somente quando João Palhinha, novamente soberbo, acertou o poste de Oblak pouco antes do final da primeira parte. Não faltava muito para acertar para poder encaminhar uma classificação relativamente tranquila.

Mas o segundo tempo teve duas partes distintas: uma em que Portugal teve inventividade e a que não teve nada a partir dos 20 minutos, quando da inexplicável dupla mudança promovida por Roberto Martinez, que tirou seus dois melhores homens, Vitinha e Rafael Leão, e colocou Diogo Jota e Francisco Conceição. Bruno Fernandes foi recuado para terrenos mais baixos, quando o ideal seria aproximá-lo de Bernardo Silva; Leão, um verdadeiro tormento, um felino livre e faminto na Savana, deu lugar para Chico Conceição, numa troca de imposição pelo drible que não resultou. 

O tempo foi passando, o jogo ficou partido e os eslovenos só não conseguiram algo ainda no tempo normal pela sua inaptidão ao ataque e o inevitável nulo permaneceu até o fim do tempo regulamentar. 

Como estava, já não havia mais sentido coletivo algum em Portugal, que ficou dependendo dos seus valores individuais. E Diogo Jota disse presente quando rompeu com a bola entre os defensores e só parou quando foi derrubado na área: pênalti indiscutível e a grande chance de Cristiano finalmente marcar o seu e estabelecer o recorde que, mesmo dizendo o contrário, incomodará até que consiga, mas faltou-lhe a calma de costume e o chute, forte e à meia-altura, foi desviado por Oblak e encontrou seu poste esquerdo antes de sair. 

Se o veterano avançado falhou, o jogador com mais rodagem da Terra entre todos que já estiveram pelas andanças da Eurocopa, o monumental Pepe, foi tentar um passe em zona proibida e errou tudo: bola, chão e tempo de bola. E Sesko, 20 anos mais moço, ficou com o gol à sua frente, mas desperdiçou. Ou melhor, Diogo Costa, com o pé, operou o primeiro milagre da noite já a dois minutos do fim. Seria injusto Portugal cair por erros justamente de Pepe e de Cristiano.

Quando acabou o jogo, o capitão caiu. Trocou o chilique dos gols falhados por um choro que o fez tocar o chão dos mortais, posto que é humano. Daí surgiu Diogo Dalot, seu melhor - e talvez único - amigo na segunda passagem pelo Manchester United, e o consolou. 

Mas ainda faltava o fado, o drama, o palco perfeito para o surgimento de heróis e vilões. E santos. 

A canonização é possível quando dois milagres são comprovados. Faltava um. E este veio na forma de três pênaltis defendidos, mas não daqueles em que o goleiro escolhe um canto e seja o que Deus quiser. Foi buscar os três, a começar pela injustiça da perda nos pés de Ilicic, que venceu uma depressão e é um dos vencedores desta Euro. 

Cristiano, mais calmo, se redimiu com uma cobrança perfeita que, não o fosse, teria parado nas mãos do outro santo dos postes. Bruno Fernandes e Bernardo Silva também foram chamados e colocaram Portugal no comboio para Hamburgo, onde a França, também de prestações mininas até aqui, espera para mais um duelo entre os países que disputaram uma final e duas meias finais. 

O apuramento aos quartos teve todo o drama que toda a gente mais dada a emoções e histórias de superação mais gosta. Se resultar em um troféu ao alto no dia 14, lembrar-se ao dos campeões forjados com lágrimas, suor e sofrimento. Se não resultar, e isto sempre é o mais provável, perguntarão por que um jogo acessível se arrastou a ponto de extenuar toda a gente? Por que Vitinha, o melhor em campo, saiu? Por que Bernardo Silva fica fixo como extremo, se joga melhor quando se associa por mais partes do relvado? Por que colocar os objetivos de Cristiano Ronaldo acima da própria equipa? 

E será preciso mais, pois milagres não acontecem todos os dias.

(Getty Images)


***

As avaliações a seguir têm um certo exagero, galhofa e quase nenhuma base técnica. É favor não levar tão a sério.

Diogo Costa: Se algum português estiver a escolher o nome do filho e não pensar em Diogo estará morto por dentro. E se for menina? Nomes compostos servem pra isso;
João Cancelo: Queira descobrir algum segredo cabeludo do mister para usar contra ele quando pensar em te tirar da lateral (Nelson Semedo: Tenho para mim que o Semedo sabe);
Rúben Dias: Estupendo, como sempre. Mas podia correr um bocadinho mais quando o Pepe deu aquela fífia;
Pepe: Os monumentos tombam, afinal (Rúben Neves: "Ó, mister, duvidas que eu dê um pontapé e meta a bola pra fora do estádio?" E foi assim que Rúben Neves entrou);
Nuno Mendes: Jogas tanto, mas tanto, que nem pareces jogador do PSG;
João Palhinha: Já que tens que marcar por todos, faça uma pergunta ao mister: "VAIS TIRAR O VITINHA? ÉS PARVO OU O QUÊ?";
Vitinha: Não erras um cara** de um passe e és tu que sais? (Diogo Jota: Não inventes mais de sofrer um pênalti quando o Cristiano estiver ansioso);
Bruno Fernandes: Já pensaste em colocar laxante no suco do mister? Ele jamais desconfiaria de ti; 
Bernardo Silva: Interessante, a ideia do mister ao te tirar da ponta direita, onde não rendes, e te passar para a esquerda, onde nunca jogas. Nem Jorge Jesus faria isso. Não hoje;
Cristiano Ronaldo: Que a humanização do seu choro e a humildade do pedido de desculpas te façam ver que podes não jogar sempre; 
Rafael Leão: Excelente estreia, Rafael Alexandre. Onde estiveste este tempo todo? (Francisco Conceição: "Eu? No lugar do Rafa? É isso mesmo?" Essas eram as únicas perguntas a serem feitas, pá, até ele cair em si);
Roberto Martinez: Não basta ter os ovos para fazer a omelete; tens que quebrá-los. Sim, é do Cristiano que estou falando.