quarta-feira, 11 de setembro de 2024

SELEÇÃO BRASILEIRA - Exclusão e desconexão: o aumento da desigualdade no acesso ao futebol brasileiro e o enfraquecimento do vínculo seleção/torcedor

PELE CLARA O perfil do torcedor presente nos jogos do
Brasil (Marcello Casal Jr./Agência Brasil)  


Não bastasse o baixo nível apresentado em campo, ver a Seleção Brasileira na cancha é um privilégio para poucos, algo proibitivo para a imensa maioria das população brasileira. Em 2021, quando fiz um levantamento para o Ludopédio sobre o custo para ver jogos de Brasil e Portugal nas Eliminatórias para a Copa de 2022, a diferença entre o que era cobrado nos dois países já era grande. Três anos depois, porém, o fosso aumentou.

Para comparar, à época, peguei jogos com o mesmo peso (Brasil x Uruguai e Portugal x Sérvia) e condição: um assalariado que recebia o salário mínimo vigente, desconsiderando os descontos. Resumindo, em 2021, o trabalhador brasileiro que recebia R$ 1.100  teria que pegar no batente por 50 horas para comprar a entrada mais barata, vendida a R$ 250,00 (desconsiderando o benefício da meia-entrada); o português, por sua vez com vencimentos em €665, trabalharia por 3h06min para receber o montante necessário para comprar o ingresso, que custava € 10.

Em 2024, a coisa piorou: com o ingresso mais barato tendo um reajuste de 60% e custando 400 pilas para ver Brasil x Equador no Couto Pereira, quem recebe o salário mínimo (R$ 1.412,00 para uma carga mensal de 220 horas) teve que trabalhar por 62h24min. Portugal x Croácia, no estádio da Luz, custou o equivalente a 2h44min a um gajo nas mesmas condições (€ 820 por 200 horas trabalhadas, segundo a legislação trabalhista portuguesa). Se optasse pela entrada mais cara, o custo seria 50% maior. Ou seja, no Brasil, 93h36min; em Portugal, 4h06min. 

Em termos percentuais, o português comprometeu 1,53% dos seus vencimentos em 2021 e, pasmem, 1,22% três anos depois, já que não houve reajuste no preço das entradas face ao aumento no salário; o brasileiro, esse trouxa, teria amarrado 22,72% há três anos. Agora? 28,3%. Isso se pensarmos no preço "popular". Obviamente, quem recebe um salário mínimo sequer chegou perto da entrada do estádio Couto Pereira.

Pensando ainda no futebol português, jogos de clubes são bem mais caros. Um jogo do FC Porto pela Liga sai, no mínimo, a € 28 euros para não sócios. Do Sporting, pela Liga dos Campeões, o tíquete mais baixo sai por €31, praticamente o mesmo para ver um jogo do Benfica pela Liga, isso sem considerar os planos de sócio-torcedor que os clubes mantêm.  

No entanto, diferentemente dos clubes, as confederações nacionais não têm que pagar por multas de quebras de contratos para contar com jogadores. Basta que eles sejam elegíveis para vestirem suas camisas. A CBF, por exemplo, bateu seu recorde de faturamento em 2023, com R$ 1,17 bilhão em receitas e superávit de R$ 238 milhões graças aos ganhos com repasses de direitos de transmissão e comerciais. Nas bilheterias, houve uma queda no faturamento que, somado às premiações das seleções, caiu de R$ 103,7 milhões para R$ 45,8 milhões, o que mostra que não precisa lubrificar as engrenagens da sua máquina com o dinheiro de quem paga os ingressos para ver os jogos da Seleção. 

É óbvio que o futebol abaixo da crítica afasta os torcedores, sobretudo os que têm um comportamento de consumidor, que é o perfil mais comum atualmente em eventos mais caros, mas não é só isso. Existem estudos, como este, este e este, que relacionam o torcer com o sentimento de pertencimento, que é negado a quem não é bem-vindo nos estádios, locais repletos de simbolismo e de sedimentação. 

Um dos livros mais cultuados sobre o assunto é Febre de Bola, do inglês Nick Hornby, fanático pelo Arsenal, mas que forjou seu amor nas arquibancadas, sejam do antigo e histórico Highbury ou em pelejas fora de casa. Esta obra ensejou estudos como este, que classificam o estádio como "espaço autobiográfico". Afastado dos locais de convívio, o laço afetivo é rompido e corre-se o risco de ver novos torcedores se afeiçoarem por camisas vestidas por seus ídolos, cada vez mais afastados das figuras dos clubes - e seleções nacionais, por conseguinte - ainda mais em tempos em que jogos de todas as equipes estão a um click de distância, como mostra a pesquisa CNN/Itatiaia/Quaest, divulgada em 2023, apontando que quase metade dos entrevistados entre 16 e 30 anos torcem também por clubes do exterior.

Ao cabo, é o dinheiro que cria as conexões, que duram até que outros dinheiros as quebrem e novas conexões sejam feitas. Por ser um país onde culturas se sobrepõem a outras mesmo regionalmente, é comum torcedores que vestem a camisa de clubes de outros estados, fenômeno que explica a força do futebol carioca nas regiões norte e nordeste do Brasil desde a Era Vargas. Neste sentido, não é pelo clube da cidade ou do bairro que se torce, como é comum acontecer em lugares como Buenos Aires e Londres, e que de certa forma é explicado no À Sombra de Gigantes - uma viagem ao coração das mais famosas pequenas torcidas do futebol europeu, do jornalista Leandro Vignolli.

Neste sentido, o futebol varzeano está imune porque é o lugar que conecta  pessoas a lugares, independentemente de conquistas ou poder de mercado e é exatamente esse "fazer parte", como mostra o jornalista Leandro Marçal, que une comunidades em torno de equipes de futebol amador.

Ao cabo, como animal social, o homem busca conexões, mas não fica onde não se sentir bem-vindo. 

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