Por Fábio Venturini*
TORTURADO E MORTO Morte do jornalista Vladimir Herzog completa 40 anos neste dia 25 de outubro |
O filósofo alemão Walter Benjamin escreveu em suas famosas
teses sobre o conceito de História que “os mortos não estarão em segurança se o
inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”. Neste 25 de outubro,
exatamente 40 anos após o assassinato decorrente de tortura de Vladimir Herzog
em uma cela do Destacamento de Operações Internas – Centro de Operações de
Defesa Interna (DOI-CODI), em São Paulo, continuamos a matar os nossos mortos e
a exaltar o inimigo de vitória incessante.
Às vezes é difícil explicar para jovens e nem tão jovens o
que ocorreu naquela época. Alguns ignoram por falta de interesse, outros por
interesse em ignorar, mas eu sempre tento.
Os militares deram um golpe de Estado em 1964 (com apoio maciço
do empresariado brasileiro e das classes médias) alegando estar prevenindo o
Brasil de um golpe planejado pelo presidente legítimo João Goulart para
implantar no Brasil o comunismo ou uma “república sindical”. O medo era o
Brasil virar Cuba.
Era patético naquela época, bem menos do que é hoje, mas o
fato é que tal versão correu por muito tempo, visto que os militares
controlaram instituições ideológicas, como escolas, universidades e imprensa,
por 21 anos, valendo-se de expedientes como prisão, tortura, desaparecimento de
pessoas e cadáveres, demissão ilegal de milhares de pessoas, incluindo
professores e jornalistas.
Em nenhuma historiografia séria e minimamente documentada esta
versão se sustenta. Não passa de uma mentira, um discurso ideológico e vazio de
uma direita mentirosa, fascista, violenta e sociopata (com o perdão do
pleonasmo) para levantar a cortina de fumaça que permita atacar os direitos
trabalhistas e deixar as coisas mais fáceis para a grande empresa privada, seja
ela local ou estrangeira.
Como boa prática fascista, alguns sicofantas eram mantidos
em postos-chave para justificar moralmente o extermínio de opositores. Nas
redações havia até um grupo de jornalistas autointitulado “Comando de Caça aos
Comunistas”, ou CCC, que deduravam os colegas para que fossem presos,
torturados e exterminados.
Você pode pensar que esses delatores se deram mal nas
carreiras. Nas últimas décadas eles foram vistos ancorando telejornais,
mediando debates eleitorais como arautos da democracia. E por aí vai. Apoiar a
ditadura foi um excelente negócio. Nenhum, absolutamente nenhum, agente público
ou privado envolvido em centenas de crimes cometidos de modo apócrifo em nome
do povo brasileiro foi punido. Pelo contrário, construíram fortunas e
permaneceram com livre trânsito no círculo palaciano de todos os governos civis
pós-1985.
Cartolas e a farsa
Alguns apoiadores de vanguarda, de última hora do golpe ou
orgânicos do regime foram recrutados nos grandes clubes de futebol, os quais,
como mostrou em farta documentação o historiador René Armand Dreifuss (1964, A
conquista do Estado), ajudaram no golpe. José Maria Marin foi atacante do São
Paulo FC, clube do qual se manteve como conselheiro e também teve outros de
seus “cardeais” profundamente ligados e beneficiados pela ditadura, tal como o
governador biônico Laudo Natel. Como deputado estadual pela Arena se juntou a
Wadih Helu, que presidiu o Sport Club Corinthians Paulista entre 1961 e 1971,
na realização dos serviços de papagaios da ditadura. Sim, até o Corinthians, que
tanto se vangloria da tal “Democracia”, estava lá articulando a derrubada de
Goulart, depois de 1971, fornecendo quadros para a ditadura.
Herzog era militante do Partido Comunista Brasileiro e
dirigia o jornalismo da TV Cultura. Cometeu o crime de não fazer propaganda da
ditadura e bancar jornalismo honesto. Paulo Markun, também militante do PCB,
foi preso e torturado para entregar o amigo. Resistiu. Os torturadores então
sequestraram a família de Markun e começaram a torturar sua esposa, bem à sua
frente. Ele então cedeu.
Herzog foi avisado de que seria procurado, mas não fugiu. Sabia
que era um defunto caro. A história é contada no documentário "Vlado 30 anos
Depois", lançado em 2005 e dirigido por João Batista de Andrade.
Sempre que algum defunto caro entrava na lista dos homens da
tortura, como o delegado Sergio Fleury, sicofantas como Marin e Helu proferiam
discursos patrióticos anticomunistas para justificar alguma ação de captura. Ambos
promoveram uma campanha implacável na Assembleia Legislativa de SP para
exoneração do diretor de jornalismo que “queria transformar a TV Cultura numa
emissora comunista”. Foram complementados por colunas do jornalista Cláudio
Marques, dos jornais Shopping News e City News. A farsa estava montada.
Vladimir Herzog foi preso em 24 de outubro de 1975. Depois
de torturado e assassinado no Doi-Codi, teve seu corpo usado numa foto que
tentou construir um falso suicídio, tudo realizado por agentes pagos com
dinheiro do povo brasileiro e de uma caixinha de empresários, os mesmos que
enriqueceram com a ditadura e até hoje passeiam, eles próprios ou seus
filhos,nas colunas sociais com grandes brasileiros e grandes empreendedores.
Depois do labirinto
de espelhos
Herzog acertou ao crer que era um defunto caro. Sua morte
motivou movimentos pela abertura da ditadura. Entre os milhares de presos,
torturados, mortos e desaparecidos, até hoje é o mais lembrado e rememorado. Não
foi apenas choro de Marias e de Clarisses. Mas como a esperança equilibrista
sabe que o show de todo artista tem que continuar, ainda somos os mesmos e
vivemos como nossos pais.
Entre 2003 e 2013, o Brasil estava em uma sala acariciando o
gato, quando resolveu atravessar o espelho. O que ele viu lá foi mais do mesmo:
agentes do estado prendendo, torturando, matando e sumindo com os corpos; o
Estado combatendo sua população; os mesmos corruptos da ditadura abrindo a
caixa de ferramentas com os discursos anticomunistas para tomarem para si o
butim que está com um governo que não lhes agrada; racismo, homofobia e
misoginia estruturais; cultura do estupro; imprensa burguesa mentirosa,
articulada, sugando a vida de um exército de jornalistas, seja no pescoção dos
fechamentos ou na bala de borracha.
Os pedidos de revisão da lei de anistia foram indeferidos
pelo Supremo Tribunal Federal. Tortura, sequestro e assassinato cometidos por
um Estado são crimes contra a humanidade, imprescritíveis segundo todos acordos
internacionais assinados pelo Brasil e incluídos na Constituição, a qual
deveria ser protegida pelo STF. A recusa em punir é o sinal para que os
fascistas atuais matem, forjem, torturem e exijam a impunidade.
José Maria Marin presidia a CBF durante a Copa do Mundo,
recebeu chefes de Estado e estádios construídos por empresas que se fizeram
durante a ditadura, foi o recepcionista de um país que premeia torturadores e
assassinos, cúmplices e financiadores da tortura.
Em 2015, depois de perder nas urnas, o empresariado continua
querendo caçar direitos trabalhistas, emparedou a presidência da república,
convocou com sua imprensa, a mesma de 1964, os fascistas que saíram às ruas
usando o discurso do anticomunismo para sequestrar o mandato, impedir o projeto
de governo escolhido nas urnas e prontamente abandonado pelo Partido dos
Trabalhadores perante a banca.
Há poucos dias o assassino, sequestrador e torturador Carlos
Alberto Brilhante Ustra morreu sem ser punido. Recebia aposentadoria integral
referente ao posto de coronel do Exército paga pela União. Foi celebrado por
deputados oriundos das polícias militares.
A única coisa que foi tirada com a ditadura foi a própria
ditadura. Os seus principais parceiros estão até hoje fazendo troça do povo, do
trabalhador. Cada vez que um motorista tenta atropelar um ciclista chamando-o
de comunista, Herzog é novamente torturado.
Sempre que um jovem apoia as balas
perdidas, as execuções e gosta quando PMs ameaçam o delegado que prendeu um
sargento pelo crime hediondo e imprescritível de tortura, Vlado é novamente
assassinado por agentes do Estado. Sempre que fascistas e pseudomoderados
condenam um professor por recitar um poema, a foto para fraudar um assassinato
como suicídio é clicada novamente. A cada programa policial um novo Doi-Codi é
revigorado.
Não
temos o direito de alegar desconhecimento, pois a Rainha Vermelha já nos levou
para a colina e vimos o jogo de xadrez. Também sabemos fazer o peão andar duas
casas.
Nossos mortos não estão dormindo em paz e o inimigo não tem cessado de vencer.
*Fábio Venturini é professor e historiador.
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