sábado, 1 de junho de 2024

Pílulas amadoras - 14

 *por Humberto Pereira da Silva

CERTO? O "jeitinho brasileiro", injustamente atribuído a
Gérson graças ao comercial do cigarro Vila Rica



Na partida entre Santos e América-MG, pela Série B do Campeonato Brasileiro, disputada há alguns dias, houve um lance que gerou muita discussão: o primeiro gol do Coelho, marcado pelo atacante Renato Marques. Na jogada, o goleiro santista, João Paulo sofreu uma lesão em disputa de bola com Marques, caiu aparentemente com muitas dores e o americano rolou a bola para o gol vazio.

Num primeiro momento, acusação de falta de fair-play da parte do jogador do América. En no calor da hora, jogadores, ex-jogadores, comentaristas  etc se manifestaram. As manifestações, como de costume, foram bem variadas, passionais, ao se levantar argumentos de ocasião. 

O lance em si, bem raro, mostra a surpresa tanto para o jogador quanto para os que se manifestaram. Condenar Renato Marques por falta de fair-play logo pareceu exagerado. 

Tomada isoladamente, a jogada em si dispensa o sentido usual e vago do fair-play.  Fair-play é uma tomada de decisão individual numa situação em que um jogador tem diante de si a possibilidade de pensar se para ele é ou não ético dar sequência a uma jogada. 

Ocorre que o futebol envolve várias situações de catimbas, simulações, blefes. A decisão de fair-play não é automática. Há uma variedade de condicionantes dentro do gramado para, em décimos de segundo, levar a uma decisão.
 
No caso específico de Renato Marques, pelo que vi, o gesto de chutar a bola foi automatico. Mas ele também imediatamente percebeu a situação. Ao não comemorar o gol, deu para ver que ele sentiu que poderia ter tido outra decisão.
 
Ora, se o lance para mim dispensa o sentido usual da palavra fair-play, isso implica que ele pode ser pensado em termos de protocolo. Sendo raro, esse gol de Renato Marques poderia ser tomado como exemplo para situação parecida. Caberia estabelecer um protocolo no qual o árbitro decidiria anular ou não o gol. Há no futebol atual precedentes. A confirmação de um gol numa situação de eventual impedimento é decidida após as linhas traçadas pelo VAR.

Uma vez constatada a contusão no lance, caso do João Paulo, é constrangedor para o América e para o Renato Marques ter o gol confirmado. Então, justamente porque entendo poderia ser decisão do árbitro, porque faz parte do futebol a catimba, a simulação, o blefe.

Infelizmente não foi o que ocorreu com o João Paulo. Por isso, acho o caso poderia ser discutido em termos de protocolo e não no vago e usual emprego do fair-play. O árbitro teria a decisão final de validação ou não de um gol em situação como a do gol que abriu o placar, que foi fechado em 2 a 1 para o América.

O contraponto**

Esse lance, como é a moda atual de falar, tem algumas camadas. A comemoração tímida, ou falta dela, demonstra que o avançado percebeu que havia algo de errado, como bem observado acima. Até aí, penso eu, cabe somente ao jogador a decisão de fazer algo grandioso ou "fazer pelas couves", como diria meu pai. Eu gosto de pensar no futebol além do resultado. Lances como o visto no Independência, campo americano, transcendem o jogo, mas aí sou eu, distante do seu contexto, como decidir coube a quem tinha a bola à disposição.  

O que me incomodou foi o que aconteceu depois: vi muita gente dizendo que poderia ser cena. O goleiro foi substituído e teve constatada uma das piores lesões do esporte, pelo caráter traiçoeiro e pelo tempo de recuperação:  o rompimento do tendão de Aquiles. O discurso envergonhado do capitão do América não me convence porque, sendo líder do grupo, poderia propor que o gol fosse retribuído, como já aconteceu em diversas partidas, até sob as ordens do próprio treinador. Marcelo Bielsa, atual técnico da seleçao uruguaia, deixou de conquistar um acesso à Premier League porque ordenou que seu time, o Leeds, retribuísse um gol que marcou e, sob sua ótica, foi antiético

Num ponto, discordamos: o árbitro poder anular o gol. E discordo porque sempre haveria uma forma de burlar. Imagine um lance no fim do jogo: hipótese clara de gol, o goleiro ou algum jogador qualquer simula uma lesão. Quem poderá verificar? Há lesões que são identificadas algumas horas depois.

Eu trabalhei com futebol de base e há um consenso em torno do papel do treinador: este e um educador. Não por acaso é chamado, até de maneira injustamente jocosa, de professor. Bielsa ensinou que a honra vale mais que a conquista a qualquer preço do objetivo da temporada, que ficou para o ano seguinte, e ele, para a história. Rogério Ceni, na primeira de suas passagens no comando do São Paulo, ralhou com Rodrigo Caio logo após um Majestoso por este ter confessado, logo após o lance, que fez uma carga no atacante Jô e isso causou o choque com o goleiro que resultaria no cartão amarelo, o terceiro da série, que tiraria o corintiano do jogo seguinte, não fosse a atitude louvável do defensor. É de cada um, pois. Prefiro Bielsa a Rogério.

Voltando, o autor

Também pensei no exemplo da retribuição. Nesse caso também há precedentes, mas, justamente porque sempre haverá formas de se burlar, o árbitro, neutro, poderia decidir, como decidiu sobre mudar um cartão de amarelo pra vermelho, como aconteceu com o atacante Bruno Henrique, no jogo do Flamengo.

A situação do gol do Renato Marques é bem rara e é muito complicado usar a palavra fair-play para a situação. Você falou inicialmente nas camadas e no final do que escreveu, realmente é um "nó" que transcende o futebol. A saída não é nada fácil, como uma fórmula pronta. Pois imagine que poderia ser cena. Só depois ficamos sabendo que não foi. No instante, o Renato Marques não tinha como saber se era ou não cena.

O que nos incomoda é a conversa rasteira sobre levar vantagem ou sobre a hipocrisia do fair-play. Li que o Renato Gaúcho falou algo sobre o mundo ser dos espertos. A Lei de Gérson é abominável. 


* Humberto Pereira da Silva é professor de Ética em Jornalismo
** Marcos Teixeira é jornalista e editor deste blog, além de colunista do Netlusa, do Ludopédio e setorista do futebol português no PodPlaca.

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